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PARTE I
ANTES DE TUDO ...
TUDO SOBRE JOVENS LÍDERES
Texto
Luiz Gustavo Cardia Mazetti
Coordenação e Pesquisa
Letícia Vargas de Oliveira Brito
Luiz Gustavo Cardia Mazetti
Marcelo Assis Xaud
Colaboração e Revisão
Carla Neves
Carmen Barreira
Carolina Martins Lopes
Marcos Carvalho
Rafael Rocha de Macedo
Rubem Tadeu Cordeiro Perlingeiro
Revisão Ortográfica
Carolina Meneses
Realização
Núcleo Nacional de Jovens Líderes
Este documento é a primeira parte, de um total de quatro, da
publicação “Tudo sobre Jovens Líderes”, em elaboração pelo
Núcleo Nacional de Jovens Líderes, da União dos Escoteiros do
Brasil. O restante desta publicação será concluída nos próximos
meses, para sua publicação integral. Todo seu conteúdo pode
ser livremente reproduzido e divulgado, desde que respeitada a
citação de seus autores e não utilizado para fins comerciais.
1. O que é Juventude?
“Coração de estudante, Há que se cuidar da vida,
Há que se cuidar do mundo, Tomar conta da amizade”
Milton Nascimento e Wagner Tiso (Coração de Estudante)
Começar este livro com uma pergunta tão simples dessas pode até parecer
estranho. Afinal, quem é ou já foi jovem tende, pelo senso comum, a buscar as
explicações mais visíveis por meio de referências como idade, mudança no corpo, fase
da vida social e comportamento.
O conceito de juventude foi construído ao longo da história e com ela chegou-se a
idéias bem diversas a este respeito. É difícil fazer uma definição precisa, pois além desta
diversidade, o conceito não esteve presente em todas as épocas. Ao longo do tempo, no
entanto, duas características predominaram até os dias de hoje: transição e conflito.
Vamos seguir primeiro a idéia da transição. Passar de uma fase, de um estado a
outro. Afinal, não são os jovens pessoas de pouca idade e que ainda tem muito por
viver!? Os jovens já não deixaram de ser crianças, mas ainda estão se tornando adultos
de fato!? Não é nessa fase que o corpo cresce rapidamente, quase que em definitivo?!
Pois então: uma transição.
Nas sociedades mais primitivas, como indígenas, aborígenes e polinésios, são
muito comuns rituais que marcam a passagem do jovem de uma fase a outra da vida.
Invariavelmente, há uma certa idade em que as transformações do corpo já são evidentes
e com isso o jovem deva passar por alguma provação, que represente sua iniciação a um
novo convívio social. Estes rituais são quase sempre feitos por meio de um sacrifício
doloroso e seu significado contido de valores religiosos.
Ao jovem cabe aceitar o rito com coragem e força, como forma de respeito àquele
momento de reconhecimento da sociedade. Muitas vezes estes rituais resultam em
marcas no corpo, simbolizando um novo momento da vida, cujo indivíduo passa a ter
mais utilidade na comunidade e a confiança dos mais velhos. Estes novos estágios da
vida, por exemplo, iniciam estes jovens ao matrimônio, a arte da caça e o ensino de
tradições. Em alguns casos simbolizam até uma nova vida, com mudança de nome1!
No entanto, uma diferença fundamental nesta transição vivida pelos jovens das
sociedades primitivas é um certo caráter de passividade. Nestas sociedades o jovem
espera dos adultos o momento de ser reconhecido e aceito por meio destes rituais. Antes
disso, apesar de serem parte da comunidade, os jovens não são sujeitos plenos de
direitos, mas apenas de deveres.
Mesmo assim, salvo as devidas proporções, não é um pouco assim que fazemos
até hoje? O baile de debutantes, tirar carteira de motorista, a “primeira vez”, o vestibular,
sair de casa, o primeiro emprego. Não são também marcos de transição da juventude!?
Vamos agora seguir aquela segunda idéia sobre juventude: o conflito. O choque, a
ruptura ou mesmo a contradição. Afinal, não é nesta fase em que ainda não somos
independentes, mas já temos responsabilidades a cumprir!? Ou quando ainda estamos
aprendendo, mas que já devemos saber de algumas coisas!?
1
GENNEP, Arnold Van. Los Ritos de Paso. Buenos Aires - Argentina: Editora Prometeo, 2002.
Se voltarmos aos dias atuais, veremos que os jovens estão ainda sujeitos aos
processos de preparação para a vida em sociedade: a escola, a descoberta de uma
profissão, a proteção da vida em família e a descoberta da sexualidade.
Mas é também nesta mesma fase que os jovens já representam muito para a
sociedade. Os jovens já fazem parte das estatísticas de emprego ou desemprego, já são
eleitores, podem dirigir um automóvel, são parte ativa do mercado de consumo e até
constituem família. E porque não também líderes comunitários, ativistas sociais,
formadores de opinião ou mesmo cidadãos exemplares!?
Segundo dados da Organização das Nações Unidas2, quase metade da população
mundial possui menos de 25 anos. Desta imensa parcela, 85% vivem em países em
desenvolvimento e de grandes desigualdades sociais. Já segundo o IBGE3, no Brasil são
34 milhões de pessoas entre 15 e 24 anos, o que representa cerca de 19% da população.
A juventude brasileira representa também 40% da População Economicamente Ativa,
num mercado de trabalho que cresce apenas a 36% da capacidade de absorção deste
contingente de jovens, em um país que é o quinto maior em território, a décima
economia mundial e um dos primeiros em desigualdade social. Não são números
significativos e ao mesmo tempo preocupantes!?
É nesta fase da vida repleta de escolhas e desafios, diante deste cenário, que
caracterizamos a juventude com a idéia de conflito.
Mais além, nos dias de hoje não se pode definir a juventude pelo singular, mas
pelo plural. “As” juventudes, ao invés do simples “a” juventude. Afinal, as juventudes
são realmente muitas, diversas, por estarem imersas nas mais diversas culturas, meios de
vida e cenários sociais, e com isso, em perspectivas bastante diferentes, mesmo dentro
de um mesmo país ou até de uma mesma cidade.
E mesmo a noção de juventude, enquanto faixa etária, merece mais alguns
cuidados. Segundo a ONU4, entende-se por juventude os indivíduos compreendidos na
faixa de idade entre 15 a 24 anos5, mas inflexões são toleradas a depender da cultura e do
país. Dentro do universo destes jovens, cabe-nos ainda dividi-los em dois grupos:
adolescentes e jovens adultos. Na maioria dos países, a maioridade legal começa a partir
dos 18 anos. Não entraremos muito nestes detalhes para não complicar ainda mais o
tema, afinal, dissemos que era um tanto complicado mesmo.
Nesta primeira parte falamos um pouco do que é e representa a juventude nos
dias de hoje. E tratamos das idéias de transição e conflito. Memorize bem essas idéias,
pois você voltará a encontrar com esses significados no decorrer do livro. Que tal
falarmos agora da juventude e o escotismo!?
Vamos então ...
2
UNITED NATIONS. World Youth Report - The Global Situation of Young People. New York - USA: 2003.
Documento elaborado a partir do “Expert Group Meeting on Global Priorities for Youth”, em Helsinque - Finlândia, 2002.
3 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico - Características da População.
Rio de Janeiro: IBGE, 2002. Disponíveis em www.ibge.gov.br.
4 Em 1985 a Assembléia Geral das Nações Unidas declarou aquele como o “Ano Internacional da Juventude”. A partir deste
marco, começaram a ser formuladas classificações etárias que servissem de base para estatísticas e publicações sobre
demografia, educação, emprego e saúde para a juventude.
5 UNITED NATIONS POPULATION FUND. State of the World Population - Overview of Adolecent Life. New York USA: 2003. A ONU compreende dentro do conceito de juventude a divisão entre adolescentes, de 10 a 19 anos, e jovens, de
15 a 24 anos. Estas divisões alcançam ainda, em parte, os conceitos de infância e “jovem adulto”. Todavia, classificações
diferentes são admitidas por outros segmentos e agências da ONU, respeitando aspectos sociais, físicos e psicológicos.
2. Histórico: Escotismo e Participação Juvenil
“O escotismo divorciado da realidade não existe”
Laszlo Nagy
Agora que já pensamos um pouco no conceito de juventude, vamos então pensar
em como a juventude foi parte do surgimento do escotismo. Iremos fazer uma viagem
no tempo e nas idéias. Vamos então contar a história do escotismo de um jeito diferente,
sob a ótica da participação juvenil.
Antes do escotismo, um homem ...
Na obra de Laszlo Nagy6 o autor provoca um questionamento, dentre muitos,
cuja resposta se encontra ao longo do tempo: “a proposta educacional do escotismo é uma idéia
jogada ao acaso ou existe por atender a necessidades reais?”7.
Das muitas interpretações possíveis, foi sua intenção incitar, favoravelmente, que
a mente genial de Baden-Powell não teria criado o escotismo por acaso, mas sim diante
de uma preocupação real de como lidar com a juventude frente aquele mundo. Mais do
que a percepção de um desafio que se perpetuou até os dias atuais, quando o escotismo
completa um século de história, sua proposta tornou-se uma resposta contundente
perante este desafio.
O escotismo surgiu na Inglaterra do começo do século XX, tempo e lugar de
complexas transformações para o mundo. Uma Inglaterra imperialista, monárquica e
cristã. O berço da Revolução Industrial, uma transformação social que, nesta inútil
tentativa de síntese, mexeu rapidamente com as estruturas sociais, econômicas, políticas
e ambientais. A relação do homem com os indivíduos, a natureza, sua organização social
e vida pública estavam em plena, irreversível e complexa transformação.
Antes de chegarmos a este nebuloso cenário, tão nebuloso quanto a Ilha de
Browsea, onde o escotismo começou, cabe-nos reafirmar que esta figura, quase
mitológica que foi Baden-Powell, trouxe consigo uma imensa bagagem cultural, que lhe
daria a condição de responder a intrigante equação daquele tempo.
Nos acostumamos a recordar de BP como sendo “o homem que criou o
escotismo”. Poderíamos arriscar que não, sem desmerecê-lo, pois ele foi muito mais que
isso! BP foi um homem visionário e humanista, que soube dar aos jovens uma valiosa
contribuição para o futuro. Em sua juventude e carreira militar, o escotismo teve seus
embriões.
Na infância, Robert Baden-Powell foi sujeito de uma educação peculiar, mas nem
por isso menos criteriosa. Órfão de pai muito cedo e último de uma série de irmãos, BP
foi criado em meio à natureza, liberdade, aventuras, um generoso interesse pela cultura e
valores rigorosos. Nunca foi grande talento nos estudos, mas era de forte personalidade,
fácil amizade, talento nas artes dramáticas, amante da natureza e habilidoso aventureiro.
Ainda jovem iniciou uma longa e vitoriosa carreira militar. Conheceu muitos
lugares mundo afora, aprendeu muito com diferentes culturas e foi protagonista de feitos
heróicos. Contudo, BP não foi um militar de façanhas convencionais.
6 Laszlo Nagy é ex-secretário geral da WOSM “Organização Mundial do Movimento Escoteiro” e autor da obra “250
Milhões de Escoteiros”, sobre a história do escotismo entre os anos de 1907 á 1983.
7 NAGY, Laszlo. 250 Milions of Scouts. Lausanne - Switzerland: Editions Pierre-Marcel Favre, 1985. p 13-14.
Logo no começo foi reconhecido pela valiosa capacidade perceptiva, à medida
que implantava no exército inglês conhecimentos inovadores, que colocavam o meio a
serviço do indivíduo (neste caso o soldado). Em outras palavras, permitia ao indivíduo
maior integração à natureza e ao desenvolvimento de suas capacidades, ao implantar
técnicas de conduta e atuação no campo8. Com estas idéias recebeu sucessivas
promoções, sempre sendo reconhecido pelo seu companheirismo, dedicação e
preocupação com o ser humano.
Ao final da carreira, acumulou sucesso em diversas missões, sendo a mais
importante o “Cerco de Mafeking”9, cujo desfecho além de vitorioso, foi surpreendentemente pacífico. Mesmo sendo um militar, BP não era um homem de guerra, pois
colocava sua capacidade e liderança a prova de soluções pacíficas.
BP voltou à Inglaterra já como um herói nacional e motivado pelo sucesso do
trabalho em Mafeking, dedicou seus dez últimos anos de carreira militar a uma série de
definitivas experiências10 e estudos, que ao seu final ele começara a definir como “o
escotismo”.
Laszlo Nagy nos relata que BP estava em um período de profunda reflexão e
aprimoramento de idéias, que tomaram propósito maior à medida que as contrastava
com a triste realidade da época11. A Inglaterra sofria com uma nova realidade econômica,
enfraquecida pelo fim de diversos domínios territoriais do império britânico.
Ele, como todo o povo, estava confuso com a imposição de uma nova ordem
social, aderida pela industrialização crescente, que refez a lógica da organização social.
BP deixara o país durante anos e ao voltar se desiludiu com a realidade que se empunha.
Estava sobretudo preocupado com os jovens e temeroso pelo futuro.
Mas afinal, o que estava acontecendo?
8 O conceito de escotismo, ou escotear e escoteirar, tem origem nas práticas de campo militares, em que o soldado age de
acordo com suas observações sobre o meio natural, através do aprendizado pelo exemplo. As tropas britânicas da época
eram muito carentes de conhecimentos a respeito e desprovidas de técnicas que colocassem o fator campo ao seu favor.
Baden-Powell sempre foi, por gosto e entusiasmo, um grande estudioso no assunto, tornando-se o principal agente de
mudanças técnicas e conceituais, nas estruturas materiais e táticas de campo do exército britânico. Este conhecimento lhe
valeu grande respeito frente os demais militares. Assim, o termo “escotismo” acabou sendo importado ao “Movimento
Escoteiro”, em alusão ao conceito de aprendizado desenvolvido por BP, que colocava a natureza como cenário ideal para a
aplicação de instrumentos co-educativos, tal como desenvolvimento da conduta e caráter. Tanto no meio militar, quanto no
Escotismo propriamente dito, tais técnicas de conhecimento da natureza sempre foram aplicadas como uma ferramenta
educativa a serviço da preservação da vida e do bem estar humano. Contudo, é evidente que no meio militar tais técnicas
eram parte do treinamento estratégico do exército britânico, levadas ao escotismo como proposta educacional ao ar livre.
9 Entre o período de outubro de 1899 a maio de 1900, BP comandou uma minoria de soldados e recrutas locais
encurralados na cidade sitiada de Mafeking - África do Sul. As forças britânicas somavam 1.200 homens, especialmente
treinados e orientados em técnicas escoteiras militares, contra 6.000 boers - colonos brancos rebelados. Apesar da
desvantagem numérica e material, BP utilizou seus conhecimentos postos a serviço dos soldados, para resistir a um cerco de
poucos conflitos sangrentos, poucas baixas, custos e danos materiais. A maestria de BP em controlar a situação se espelhou
nas suas táticas esquivas de combate, seus cuidados em zelar pela integridade dos civis e inclusive pela maneira cordial como
tratava o inimigo. O desfecho pacífico ao cerco e triunfante para o exército britânico, foi euforicamente comemorado pelo
povo nas ruas em todo o Reino Unido, os jornais publicaram “uma nova página na história do heroísmo humano” (Nagy,
p46), digno até de um telegrama com os cumprimentos da Rainha Vitória. O triunfo de Mafeking resgatou a estima e o
patriotismo nos britânicos, promoveu BP aos 43 anos para General da Divisão (o mais novo a ocupar o cargo), tornou-o
herói popular e um ícone para a juventude.
10 Antes deste período de dedicação aos estudos, BP já carregava uma série de experiências em sua vida militar, que o fazia
acumular idéias já intencionais e uma visão educacional ainda disforme, como as missões de Kandahar, Drakensberg,
Petrorius, Ashanti, Matabele e por último Mafeking. Já nesse período pós Mafeking, BP desenvolve o “Sistema Voluntário
de Treinamento” e a “Legião Estrangeira de Constabulary”, que foram as primeiras experiências educacionais conscientes,
apesar de ainda próximas do círculo militar e herdadas das fronteiras de guerra. Também se valeu de estudar bibliografias
educacionais da época e do contato com a “Boys Brigade”, uma antiga instituição paramilitar, que foram impressas longe do
ambiente militar.
11 NAGY, Laszlo. 250 Milions of Scouts. Lausanne - Switzerland: Editions Pierre-Marcel Favre, 1985. p 54-56.
Antes do escotismo, um tempo ...
Relatos daquela virada de século nos contam que a invenção da máquina a vapor e
o sistema de produção em série, mais que geniosos inventos que marcaram a Revolução
Industrial, foram o estopim de uma transformação na sistemática do mundo organizado.
Estes inventos e sua difusão geraram uma mudança na relação do homem com o mundo
do trabalho e com isso na sua forma de convívio com a natureza, sua vida em sociedade
e de seu próprio tempo12.
A partir dali se implementava um novo modelo de desenvolvimento, onde a
relação entre o homem e a sua nova fonte de riqueza - as máquinas, ficaram confusas e
desiguais. Ao invés de organizada pela manufatura e o sistema de trocas, o trabalho
humano passava a ser dominado pela utilização de máquinas e o acúmulo de bens. Esse
modelo rapidamente tornou-se tendência em outros países.
Vieram então suas conseqüências: êxodo rural-urbano, urbanização, desordem
populacional, falência na organização das cidades, formação de contingentes de trabalho
exploratório nas indústrias, desemprego, desigualdade social, isolamento do trabalhador
do campo e exploração feroz do meio ambiente.
O cenário de decadência social atacou também impiedosamente os mais jovens.
Crianças de até sete anos trabalhavam em fábricas insalubres, sem intervalo ou refeições,
por até quinze horas diárias. Via-se jovens expostos as mais precárias condições de vida:
miséria, lares desestabilizados, fome, violência, vícios, sexualização precoce, afastamento
da escola e perspectiva de vida decadente. A relação do ser humano com a sociedade, e
por extensão aos jovens, chegou a um ponto estarrecedor.
Laszlo Nagy relata que a problemática que acometia a Inglaterra tornou-se motivo
de profunda tristeza e decepção para BP. De alguma forma, apesar de deprimido,
entendeu que algo deveria ser feito diante daquele mundo menos humano13. BP não
pensou em criar o escotismo ou mesmo um sistema educacional, mas apenas pensou em
dar aos jovens algo que lhes estava faltando: opção.
Mas o que foi que BP fez?
Antes do escotismo, uma idéia ...
Mesmo com a precisão das narrativas de Laszlo Nagy, é impossível saber o que se
passava na cabeça daquele homem e sua interminável avalanche de idéias, quando em
dezembro de 1906 se afasta do meio militar, ao entrar para reserva14, e dias após se
refugia num hotel, para inspirar-se e escrever.
Começara ali a escrever um livro dedicado a juventude, que convicto de suas
idéias, experiências de vida e referências de célebres educadores, inspirava-se no contato
com a natureza, a auto-educação e a individualidade do jovem. Porém, já se fazia ali
acertos fundamentais, ao privilegiar um modelo prático e identificado aos jovens,
sugerindo algo alegre, acessível e abrindo mão da disciplina militarizada. Como reflexo
dos costumes daquela época, um modelo educacional exclusivo para rapazes.
Havia ali um educador visionário e genial, e que como bom educador tinha uma
proposta. BP não tinha o perfil de um intelectual, mas era homem de grande intuição.
12
HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. Rio de Janeiro - Brasil: Editora Livros Técnicos e Científicos, 1986.
NAGY, Laszlo. 250 Milions of Scouts. Lausanne - Switzerland: Editions Pierre-Marcel Favre, 1985. p 54-56.
14 BP entrou pra reserva em dezembro de 1906 e em janeiro de 1907 se concentrou no Hotel Walton, em Ashbourne.
Aposentou-se em definitivo no ano de 1910.
13
Com o livro Escotismo para Rapazes terminado, BP resolveu testar os seus métodos
e a aceitabilidade do produto. Para tanto, escolheu a Ilha de Browsea como laboratório e
organizou um acampamento experimental, contando com cerca de vinte rapazes
convidados a seu critério. Aos jovens foi colocado o desafio da vida ao ar livre,
atividades de campo, dinâmicas, jogos, o trabalho em equipe e a convivência “ao pé do
fogo” com o lendário herói de guerra. Mais que isto, fomentaram a criação de um código
de honra e de um espírito de coletividade, fundamentado em conceitos humanistas
orientados por BP e em contraste com o cenário perfeito: a natureza.
A intenção de BP não era criar um movimento, mas sim fazer com que demais
movimentos, já ligados aos jovens, se enquadrassem na esfera harmoniosa apurada no
programa aplicado em Browsea. Mas os diversos embriões do Movimento Escoteiro
começavam a ganhar vida própria, muitas vezes longe do controle do próprio BP. O
sucesso daquele experimento que ficara famoso como o “Acampamento de Browsea”,
armado em agosto de 1907, tirou o Escotismo da pré-história15 e o tornou realidade.
No ano seguinte, com a ajuda de colaboradores, BP lança o seu livro Escotismo para
Rapazes, primeiro na forma de fascículos e mais tarde na forma original do livro. Sua
linguagem clara e direcionada ao gosto dos jovens corre toda a Inglaterra e por extensão
outros países, na forma de publicações muito mais próximas a uma história em
quadrinhos, do que uma obra essencialmente literária. Este talvez tenha sido o segredo
que fascinou e aproximou os jovens.
BP recebe convites para palestrar conferências em toda a Inglaterra a respeito de
sua obra. A idéia do Escotismo começa a se espalhar rapidamente e conquista o
importante reconhecimento do “tripé da sociedade”: família, igreja e escola. Ficou
entendido que o Escotismo nunca se colocou acima destas instituições, mas sempre em
condições de ser um instrumento complementar ao papel educacional das mesmas.
BP ainda não pretendia criar um movimento próprio, somente adaptar-se aos
demais. Ledo engano, o que acontecia era exatamente o inverso. O modelo proposto nas
publicações obteve muito mais aceitação dos jovens que quaisquer outras idéias, pois
tinha uma identidade e autenticidade muito mais presentes.
Milhares de jovens já haviam adquirido os fascículos e experimentado suas idéias.
O Escotismo estava sendo praticado em níveis locais, sob uma escala espantosa e sem
precedentes. Haviam jovens praticando as técnicas escoteiras em diversos grupos
informais, fizeram-se diversas reproduções de Browsea e a vendagem dos fascículos
aumentava a cada edição. BP não tinha mais o controle de suas dimensões.
O Escotismo para Rapazes tornou-se uma febre. Os jovens eram movidos pela clara
sugestão de aventura e a liberdade de usarem sua imaginação. Havia ali uma idéia
simples, com intenção educativa, mas sem grande rigor pedagógico. Certamente aquelas
idéias, naquele tempo, poderiam conter muitos segredos, mas não era segredo a
fascinação gerada nos jovens e a possibilidade de exercer efetivo papel em sua formação.
E tudo isso BP observava atentamente.
Para apurar os resultados de seu evidente sucesso, convocou-se um encontro
nacional, no Cristal Palace, em Londres, no dia 4 de setembro de 1909. Então ...
15
Existiam duas correntes que entendiam o aniversário do escotismo em diferentes datas: “Acampamento em Browsea” em
1907 e a publicação do livro “Escotismo para Rapazes” em 1908. Porém, em 1997, foi criado o “Comitê do Centenário do
Escotismo”, responsável pela sua comemoração, que estipulou como data oficial do início do escotismo o dia 1º de Agosto
de 1907, dia de início do acampamento.
Um movimento de jovens ...
A resposta dos jovens foi imediata e o Escotismo “deu as caras” com adesão de
dez mil jovens ao evento. A previsão era bem menor que isso. A despeito da chuva e do
frio, acontecia um primeiro e imenso encontro de escoteiros!
Nesta primeira grande confraternização, BP comoveu-se com o empenho ainda
solitário dos jovens, o brio da juventude frente aos seus ideais de vida e principalmente,
surpreendeu-se ao constatar a adesão de moças, igualmente ávidas a vida ao ar livre e
decididas a serem “moças escoteiras”. BP estava chocado e surpreso, refletiu, mudou de
consentimento e decidiu organizar o Movimento Escoteiro.
Muito mais do que uma surpreendente adesão ao convite de BP, aquela enorme
concentração de jovens no Cristal Palace foi uma decisiva prova de que o escotismo
deixava de ser uma idéia e agora era um movimento. Coube àqueles muitos rapazes e
algumas moças, como jovens, manifestar o seu interesse por uma nova perspectiva de
mundo e estilo de vida. Coube a BP e seus colaboradores, adultos, apoiar o movimento
daqueles jovens e criar a Organização Escoteira. Começava ali uma aliança entre jovens e
adultos, entre um movimento e sua organização.
Mesmo que um dia tivesse relutado em criar um movimento, BP percebeu que
suas idéias estavam “movimentando” os jovens e ao reconhecer algumas necessidades
para que essas idéias fossem devidamente aplicadas, entendeu que era necessário criar
uma organização. BP tomou ciência que além de um ser herói para os jovens, agora
também era um líder para o escotismo. Contudo, estava claro, que aquela organização só
fazia sentido se dedicada a apoiar aquele movimento dos jovens.
Rapidamente o escotismo cresceu em efetivo, se espalhou por vários países, se
organizou e realizou os primeiros grandes eventos. Depois do Cristal Palace, outros
acontecimentos foram igualmente marcantes para se entender o escotismo como um
movimento. Seria provado que a proposta lançada por BP fazia sentido no imaginário,
no dia-dia e no ímpeto dos jovens.
Poucos anos depois daquele entusiasmado começo, o recém criado movimento
passa por uma grande provação: em 1914 estoura a 1ª Guerra Mundial. Laszlo Nagy
então nos expõem a seguinte questão: Até que ponto os princípios humanistas do escotismo
suportariam as crises de relações desenvolvidas pela guerra? Suportaram e muito bem16!
Os jovens escoteiros, que pela própria inocência estavam alheios aos motivos
políticos do conflito, exerceram importante papel nas frentes de batalha, ao executarem
prestativamente funções de limpeza, reparo de danos, mensagens, serviços gerais, doação
de sangue e atendimentos de emergência. Os jovens foram notados pela sua dedicação e
espírito solidário.
Mesmo que os motivos da guerra, como de qualquer guerra, sejam questionáveis,
a participação efetiva dos jovens e a onda de patriotismo elevaram a imagem do
escotismo e concretizou seu reconhecimento popular. O movimento cresceu de 140 para
190 mil membros, nos quatro anos de guerra.
Em 1920, em meio ao 1º Jamboree Mundial na Inglaterra, é criada a “Organização
Mundial do Movimento Escoteiro”, sob a batuta de BP. Nas duas décadas seguintes, o
escotismo continua crescendo, toma toda Europa, chega a outros continentes e é aceito
em diversas culturas. Apesar ainda de difundido pelo modelo essencialmente britânico,
16
NAGY, Laszlo. 250 Milions of Scouts. Lausanne - Switzerland: Editions Pierre-Marcel Favre, 1985. p 85-88.
sua aceitação entre os jovens de todo mundo eleva o movimento a marca dos três
milhões. O febre da juventude européia começava a se espalhar pelo mundo.
Em 1939 estoura a 2ª Guerra Mundial e mais uma vez o movimento se viu
ameaçado, agora de forma ainda mais dura. Antes e durante o conflito alguns países na
Europa e Ásia, de regimes totalitários, proibiram a pratica do escotismo. Muitas
associações nacionais tiveram de ser removidas e a comunicação ficou impossível. Ainda
pior, BP falece neste meio tempo e deixa movimento e organização se sentindo órfãos.
Mas os jovens, o seu movimento, mostram a pertinência de seu ideal e o quanto a
visão de BP superava os tempos. Os escoteiros atuaram nas frentes de batalha com o
mesmo altruísmo da guerra anterior e ao seu final, em 1945, já acostumados a se
organizar em grupos, colaboraram também nas campanhas de reconstrução.
Rapidamente o escotismo se reagrupa, as organizações voltam a funcionar e,
apesar de banido em alguns territórios, o movimento totalizava agora quatro milhões de
jovens, nos cinco continentes. Mesmo agora sem BP e a despeito das graves conseqüências desta segunda guerra, o escotismo crescia.
Nestes primeiros quarenta anos desde a sua criação (ou surgimento), o escotismo
foi duramente testado. Foi colocado a prova da realidade de maneira severa. Mais do que
nunca, aquela pergunta inicial de Laszlo Nagy estava sendo respondida. Aquelas idéias,
daquele homem, naquele tempo: não eram obras do acaso!
Aos jovens foi feita uma proposta de um novo estilo de vida, que na forma
daquilo que hoje chamamos de escotismo, permitiu a eles estabelecer sua maneira de
participar, entender e serem protagonistas do complexo mundo que os cercava. A partir
de uma opção de lazer e auto-educação, aqueles jovens entenderam de que forma os
valores do escotismo poderiam ser aplicados para o bem comum.
Assim, os jovens tornaram o Movimento Escoteiro real. Aos adultos coube apoiar
este movimento, construindo e sustentando a Organização Escoteira, e assumindo seu
caráter educacional.
Um mundo e suas mudanças, o escotismo e seus paradigmas ...
A consolidada afirmação e resistência do escotismo se deram pela contundente e
positiva reação dos jovens àqueles delicados momentos históricos. Nas décadas
seguintes, o escotismo viveu um período de grande prosperidade: a organização escoteira
se fortalece no plano continental e mundial, percebe-se significativo amadurecimento
político, os grandes eventos estavam cada vez mais grandiosos, o movimento tornava-se
conhecido do grande público, consegue-se apoio de outras organizações, o escotismo
chega ao “terceiro mundo” com força, aumenta o número de países filiados e o efetivo
chega aos dez milhões.
Porém, apesar desta aparente estabilidade, a organização do escotismo começava a
perceber o descompasso que vivia diante da realidade. O mundo, e a organização do
escotismo, assistiam, perplexos, as revoluções que a juventude trouxe à tona no fim da
década de 60. Diante das mesmas contradições que a sociedade ocidental atestou a BP
no começo do século, mas agora também sob um cenário internacional tenso, os jovens
em geral mostravam ao mundo sua insatisfação.
O mundo vivia infestado de guerras, civis ou entre países, quentes ou frias,
regimes políticos autoritários, governos burocráticos, sistemas de ensino incapazes,
segregação racial e uma dura falta de perspectiva aos jovens.
Nos EUA milhares de jovens eram perseguidos por não aceitarem ir a guerra no
Vietnã. Na Tchecoslováquia os tanques do regime comunista tomaram as ruas na
chamada “Primavera de Praga”. No Brasil foi decretado o AI5. No México milhares de
jovens foram vitimas do massacre de Tlateloco. No decorrer daquela década, os jovens,
ao invés de esperança, sofriam em ter uma visão caótica de mundo.
Tudo isso teve sua resposta! Na França, os jovens liderados por Daniel CohnBendit fecharam as universidades, exigiram reformas no sistema de ensino, reclamaram
do governo e se confrontaram com a polícia, o que gerou também a reação de jornalistas
e operários. Na Alemanha, Rudi Dutschke liderou intensa campanha contra a guerra no
Vietnã e o autoritarismo institucional. No México, universitários fizeram a chamada
“caminhada do silêncio”, em protesto a repressão do regime as reivindicações dos jovens
e da classe operária. Pouco tempo mais tarde, milhares de jovens nos EUA se
encontraram no lendário show de Woodstock, o chamado “grito pela paz”.
No Brasil, estudantes foram responsáveis pelas campanhas contra o regime militar
e pelo seqüestro político de um embaixador americano. E muitas outras revoluções ao
redor do mundo envolvendo milhares de jovens.
Aquele turbilhão de acontecimentos, apesar de fomentado no decorrer de toda
aquela década, foram mais intensos no mês de maio de 1968, chamado então de “o ano
que não acabou” 17. Tanto que, tempos mais tarde, já na década de 80, tensões semelhantes
inspiraram jovens poloneses na luta contra o regime comunista, estudantes sul-coreanos
nas longas paralisações das universidades e no famoso confronto da Praça da Paz
Celestial, entre jovens chineses e os tanques do exército.
A filósofa Olgária Matos relatou as idéias daquela geração como o ressurgimento
de um “estado de felicidade permanente”, onde defendiam-se os direitos da “verdade triunfante
do desejo” 18. Um tempo de revolução e inspiração.
Os jovens estavam inquietos, diferentes. Foi naqueles acontecimentos que surgiu a
percepção “das” juventudes, no plural, como já tratamos. Era cada vez mais difícil, por
perfis ou estereótipos, definir a juventude. Haviam os Hippies, Punks, Black Powers, a
Surf Music, os Naturalistas e muitos outros. E quantas outras “tribos” não conhecemos
hoje? E apesar de suas diferenças, mostravam ao mundo que os rumos da humanidade
não eram aqueles que os jovens desejavam. Os jovens lutavam por novas idéias, novos
valores, novos estilos e pelo essencial direito a viver em um mundo melhor.
Depois da Revolução Industrial, o mundo agora estava diante de uma Revolução
de Costumes. As muitas idéias sobre liberdade, anti-racismo, justiça social, paz e a
aceitação aos mais diversos comportamentos, são até hoje consagradas pelas máximas
“É proibido proibir”, “Faça amor, não faça guerra” e “Sejamos realistas, pensemos o impossível”!
Procure saber mais sobre estas histórias, pois realmente valem a pena.
Ao contrário do que possa parecer, isso tudo não era uma mera luta contra o
mundo adulto, mas sim uma luta contra a opressão, a desigualdade e por um mundo
mais viável. Os jovens estavam apelando em participar da problematização do mundo
que os cercava. Todavia, aqueles fatos causaram um inegável choque entre as gerações
daquele tempo.
Lembra-se que havíamos falado das idéias de transição e conflito na juventude?
Pois é, tanto quanto não foi fácil para os jovens encarar tamanha insatisfação com o
17
18
VENTURA, Zuenir. 1968, o ano que não terminou. Rio de Janeiro - RJ: Editora Nova Frontera, 1988.
MATOS, Olgária. Revista Sociológica da USP: Dossiê Maio de 68 - Tardes de Maio. São Paulo - SP. 1998, p 15-16.
mundo, também para os adultos não foi fácil entender o que estava acontecendo e o que
deveria ser feito pelos jovens.
E o escotismo, um movimento de jovens e uma organização de adultos, sofreu
igualmente desse choque. Como estava então o escotismo naquela crise?
Dar uma resposta categórica seria algo difícil e arriscado. Não há evidências
contundentes de que houve participação de jovens escoteiros nestas revoluções, ao
menos caracterizados como tal. Todavia, por serem jovens e em contato com aquela
realidade, há de se imaginar que de alguma forma foram sujeitos/expectadores daquele
intenso momento histórico.
Por detrás de toda euforia vivida naquelas revoluções juvenis e de um certo
romantismo deixado por aquele tempo, há de se considerar que houve também
momentos em que a violência e algum radicalismo foram erroneamente oportunizados
como forma de atuação, contradizendo as mais legítimas inspirações daquela geração.
Em função desse paradoxo, a posição da organização escoteira foi manter sua
condição de movimento educacional e apartidário que, ao invés de assumir qualquer
papel movido pelas idéias daquele momento particular, manteve seu propósito de
oferecer aos jovens um espaço de aprendizado de valores humanistas, sobretudo de
convivência e tolerância, que sempre foram e ainda são compromissos do escotismo, que
não são alienáveis a qualquer tempo.
É fato que o escotismo superou bem esse período, sem grandes abalos a sua
organização e com uma alta taxa de adesão, superior a um milhão de novos jovens.
Contudo, ficou evidente o alerta de que o escotismo estava diante de novos tempos, de
novas convicções e que haveria de renovar sua forma de contribuir para a construção de
um mundo melhor. O cenário era muito claro.
O escotismo vivia uma crise de identidade, com a decadência de algumas de suas
tendências. O programa desatualizado, excessivamente britânico-saxão, o uniforme
antiquado19, heranças de costumes militaristas, tradicionalismos e a divisão por sexo
entre escoteiros e bandeirantes, eram alguns dos problemas de um movimento cada vez
mais nostálgico. Reflexo disso, o escotismo foi pouco a pouco se transformando num
movimento incompreendido em alguns segmentos da sociedade, facilmente questionado
na sua efetividade e com uma imagem avessa aos jovens de mais idade20, o que resultou
em altas taxas de evasão em alguns países.
O escotismo estava diante de um paradoxo forte. Por um lado seus propósitos
eram cada vez mais verdadeiros, atuais e modernos, pois o escotismo sempre teve um
caráter universal, antidogmático e libertário. Mais que isso, é correto pressupor que
aqueles tempos afirmaram ainda mais estes propósitos.
19
Tal como os moldes do programa, excessivamente inspirado em termos culturais britânicos e americanos, o uniforme
estava visivelmente fora da realidade. A vestimenta cor de cáqui, inspirada na Boys Brigade Britânica, que por sua vez fôra
inspirada em instituições militares de serviço, não era mais utilizado sequer nestas instituições que serviram de modelo inicial
para o escotismo. O uniforme tornava-se, sem dúvida, a mais visível e evidente prova da depreciação da imagem do
escotismo, sobretudo nos jovens, que se viam obrigados a usar vestimentas que tinham muito pouco identidade com a moda
de época. Contudo, o uniforme cáqui ainda era o modelo adotado pela maioria das associações escoteiros em todos
continentes. Ainda hoje no Brasil, uma significativa parcela de Grupos Escoteiros ainda se utiliza do cáqui e seus similares
para as modalidades do mar e ar.
20 Neste período o escotismo sofreu um significativo desequilíbrio na proporção entre crianças e jovens, apesar das taxas de
crescimento, fazendo com que a grande parcela de membros dos ramos menores (em nosso caso os lobos e escoteiros)
ficassem maiores do que a parcela de membros dos ramos maiores (em nosso caso os seniores e pioneiros). Este fenômeno,
até hoje existente e passível de ser corrigido, é causado pela volatilidade dos jovens diante de um programa desinteressante e
que, agravado pela maior proporção de crianças, causa-lhes a sensação de “infantilização” do escotismo.
Contudo, o “modelito escoteiro” concebido desde Browsea para a vivência destes
valores, cada vez mais não fazia sentido para os jovens, não fazia sentido naquele
mundo. O escotismo tinha a difícil tarefa de distinguir princípios e métodos, “meio” do
“fim”, sem ficar preso ao passado ou abrir mão de sua fidelidade histórica.
A equação estava feita: os princípios não têm tempo ou lugar, mas a forma sim!
E as mudanças vieram
A partir daquele momento, até os dias atuais, o escotismo começou a aceitar e
implantar mudanças, mesmo que as vezes relutantes. Entre os anos de 1965 e 1967,
percebendo seu descompasso com a realidade e antevendo a necessidade de mudanças, a
organização escoteira promove uma grande reforma institucional, precedida de um
criterioso estudo21 sobre o movimento escoteiro e a juventude mundial. Esse conjunto
de mudanças, que primeiro focou questões políticas e do programa, abriu as portas e “as
mentes” para muitas outras reformas que se apresentavam como necessárias.
A cada conferência, a cada projeto, a cada debate, a organização escoteira estava
aprendendo, se aprimorando e trazendo novidades. Apesar de algum conservadorismo,
resistências (não que sempre sejam ruins) e complexidade, as mudanças começaram a vir.
Inicia-se um processo de fusão entre os movimentos escoteiro e bandeirante,
através de mais diálogo entre ambas organizações. O primeiro, e até agora mais
importante passo dado neste sentido, foi a aceitação de moças e rapazes entre os
respectivos movimentos, antes distintos por gênero. Foram feitas sucessivas mudanças
no programa de jovens, com especial atenção a novos termos fundamentais da lei e
promessa. Algumas heranças do ideário militar, visivelmente excessivas, foram desfeitas.
O uniforme escoteiro, tradicionalmente cáqui na maioria dos países, foi, também na
maioria dos países, substituído pelo traje escoteiro, tornando assim a imagem do jovem
escoteiro mais próxima aos jovens de maneira geral. A gestão institucional passou a se
estruturar em áreas estratégicas e com efetivos profissionais. Com o avanço nos estudos
sobre o programa de jovens e a incorporação de modernos e atuais conceitos
pedagógicos, parâmetros sobre missão e projeto educativo foram redigidos, favorecendo
importantes avanços metodológicos, como o MACPRO22 mais futuramente. Passou a
ser estimulada com maior ênfase a integração entre escotismo e comunidade, como
forma de efetiva aplicação do programa escoteiro. Tal estímulo gerou bons resultados
em ações comunitárias em países da África e Ásia, o que, tempos mais tarde, incentivou
programas de inclusão para portadores de necessidades especiais ou para jovens de
21
Diante deste cenário exigente por mudança, a Organização Mundial do Movimento Escoteiro passou por profunda
reforma institucional e política, culminando na troca de boa parte do quadro funcional, a formação de comitês mais
internacionalizados (acabando com um demasiado domínio anglo-europeu), a transferência do Bureau Mundial para
Genebra - Suíça (antes fora em Londres e Ottawa, concluída exatamente em maio de 68), na adoção de novas estratégias de
desenvolvimento e nas primeiras reformas no programa. Boa parte daquelas primeiras mudanças e de muitas outras que
viriam, foram baseadas num estudo promovido pela Organização Mundial em parceria da Fundação Ford, sobre o histórico
e perspectivas do escotismo e a juventude mundial, sendo que seu autor, Laszlo Nagy, receberia a indicação para tornar-se o
novo secretário geral da WOSM, justamente para implementar estas mudanças.
22 O MACPRO “Método de Atualização e Criação Permanente do Programa de Jovens” é um programa educacional
desenvolvido pela OSI “Oficina Scout Interamericana”, em parceria com outras instituições dedicadas á educação. Seu
princípio ativo é oferecer aos escotistas e membros juvenis um sistema auto-gestado e moderno para a prática do programa
de jovens, orientado de forma democrática, participativa e lúdica, com destaque para as fases e áreas de desenvolvimento do
jovem, em coerência aos princípios apregoados por BP. A União dos Escoteiros do Brasil faz parte do consórcio de países
participantes do MACPRO, desde sua criação, na década de 90. A implantação do programa resultou em reformas no
quadro de etapas, distintivos e nos conteúdos do sistema de formação de adultos, que ainda estão em curso.
classes econômicas mais baixas. Enfim, o escotismo lutava para estar novamente
identificado ao seu tempo e manter sua condição de movimento de vanguarda.
Essas mudanças e a necessidade de atualização do escotismo são permanentes e
por isso estão sendo implementadas até hoje. Em muitos casos, eram evidentes as
insatisfações dos jovens, sobretudo nas questões do uniforme, programa e co-educação,
que foram essenciais em importantes discussões. Afinal, para se aplicar um escotismo de
acordo com a realidade, era necessário entender o jovem daquela realidade.
Foi no olho deste furacão que Laszlo Nagy, ao comentar sobre as reformas que
ele mesmo estava implementando, concluiu: “... a finalidade da renovação era a de adaptar uma
organização de lazer, inicialmente criada para a juventude desprivilegiada - a qual mais tarde torna-seia em um movimento para a geração mais jovem, de classe média - em um movimento popular que,
embora permanecesse fiel aos princípios morais e espirituais, e aos métodos educacionais definidos pelo
fundador, fosse mais capaz de responder as aspirações da juventude moderna, em todos os países”23.
Chegamos então àquilo que faltava, um dos cernes da questão. Como promover
mudanças no escotismo que de fato atendam aos jovens? Ou a pergunta seria outra?!
Como poderia a organização do escotismo colaborar para que o movimento de jovens
continue atuando de acordo com os desafios de seu tempo? Àquela altura, em meados
da década de 70, BP não estava mais entre nós, mas se estivesse, talvez respondesse com
uma de suas mais célebres frases: “pergunte aos garotos”.
Devemos lembrar que o escotismo nasceu justamente de uma relação dialética
entre jovens e adultos, quando, antes de criar sua organização de adultos, o escotismo já
era um movimento de jovens.
Faltava portanto, no bojo daquelas tantas reformas, aquela que era uma das
condições inerentes para a correta implementação de tantas mudanças e possivelmente a
falta que dava origem a muitos paradigmas: o envolvimento dos jovens nas tomadas de
decisão.
Pensando nisso, a organização escoteira deu seu primeiro passo na tentativa de
aproximar os jovens e suas opiniões nas tomadas de decisão. Foram instituídos, desde o
início da década de 70, os fóruns de jovens24.
Como primeiro resultado, a questão tornou-se ainda mais evidente quando na
Conferência Mundial Escoteira de Tóquio, no Japão, em 1971, um jovem japonês
apresentou análises e recomendações resultantes do primeiro fórum escoteiro. Aquele
ato, um marco daquele recém iniciado processo de transformações do escotismo, serviu
de apelo para que as mudanças em curso contassem com a opinião dos jovens, tornou
pública algumas insatisfações e serviu de um claro alerta aos adultos em geral.
Começou ali os primeiros esforços para envolver os jovens, mas também, apesar
da boa intenção, criava-se um novo paradigma. Vamos entender porque ...
Um primeiro passo
A idéia era proporcionar aos jovens um espaço livre e reservado para exposição de
suas idéias, úteis para a organização escoteira tomar suas decisões. Mesmo sem grandes
inspirações práticas, estava-se dando “voz aos jovens”.
23
NAGY, Laszlo. 250 Milions of Scouts. Lausanne - Switzerland: Editions Pierre-Marcel Favre, 1985. p 173.
Na Conferência Mundial Escoteira de Helsinque, na Finlândia, em 1969, foi tomada a resolução 12/69, que encorajava as
associações escoteiras nacionais e continentais a realizar fóruns ou conferências de jovens (o termo fórum prevaleceu),
como forma de aumentar a participação dos jovens nos processos de tomada de decisão.
24
Durante duas décadas, os fóruns foram incentivados e promovidos nos diferentes
níveis. No âmbito internacional iniciou-se uma série de fóruns mundiais25 e fóruns
continentais, geralmente para os maiores de 18 anos. Em diversos países, inclusive no
Brasil, foram realizados sucessivos fóruns nacionais e regionais para todas as idades.
Apesar do grande número de associações nacionais que aderiram à idéia e com
isso a realização de inúmeros fóruns26, envolvendo milhares de jovens, o avanço efetivo
foi muito pouco. A evolução destes eventos não gerou os resultados desejados e
comprovou-se diversas implicações práticas e até legais. De maneira geral estes eventos
eram mal preparados, não recebiam efetivo apoio técnico da organização, inexistiam
objetivos institucionais ou educacionais e suas possibilidades foram subestimadas.
Foram duas décadas em que a quantidade sobrepôs a qualidade. Foram duas
décadas em que a tentativa de solução muitas vezes se tornou problema.
As incoerências eram muitas. Não havia um planejamento ou guia de trabalho que
orientasse a realização dos fóruns. Com isso, não havia uma relação de compatibilidade
entre os fóruns e a organização escoteira, quando, por mais que fossem promovidos
pelas associações, sua pauta (se houvesse) não condizia às questões em curso na
organização. Não havia portanto partilha de interesses, com propostas de debates úteis à
organização e atrativas aos jovens. Muitas vezes, por falta de conhecimento dos jovens e
informações disponibilizadas de forma ágil pelas associações, os fóruns propunham
soluções que não possuíam a devida aplicabilidade prática, sendo então rechaçadas. Isso
aconteceu sobretudo nas questões relativas ao programa escoteiro, co-educação e
principalmente uniforme, em que notou-se um maior engajamento dos jovens. Essa
ausência de um planejamento e de atualizações ou acúmulos dos debates anteriores, não
permitiu que seus debates seguintes tivessem noção de continuidade e temporalidade,
levando muitas dessas discussões a serem repetidas em diferentes edições, agravando a
falta de foco e consistência das propostas.
Não havia qualquer paralelo entre os fóruns e as questões de juventude da época,
o que dificultava o interesse dos jovens. As circunstâncias em que estes fóruns se
realizavam eram muitas vezes inadequadas, pois muitas vezes eram feitos como
segmentos de grandes eventos27, o que tornava o perfil dos participantes duvidoso. Via
de regra, as propostas feitas pelos fóruns de jovens não recebiam qualquer resposta ou
esclarecimento publicado oficialmente.
Para piorar, em cima destes erros surgiram outros. Fizeram-se tipificações diversas
dos fóruns, como versões por modalidade e por distritos. Criaram, a partir dos fóruns,
25
Nestas primeiras duas décadas, os cinco primeiros Fóruns Mundiais foram realizados como parte integrante de outros
grandes eventos. Os Fóruns Mundiais de 1971 no Japão, 1975 na Noruega e 1983 no Canadá, foram realizados junto aos
Jamborees Mundiais nestes respectivos países. Os Fóruns Mundiais de 1990 na Austrália e 1992 na Suíça, foram realizados
junto aos Rover Moots Mundiais nestes respectivos países. Entre estes cinco primeiros Fóruns Mundiais, foram realizados
também alguns outros fóruns internacionais, no ano 1979, no Centro Internacional Escoteiro de Kandersteg, na Suíça e no
Dala Jamboree, na Suécia, devido ao cancelamento do Jamboree Mundial daquele ano, que deveria ter acontecido no Irã.
26 Para se ter uma noção do número de fóruns de jovens realizados nestas duas décadas, somente no Brasil, podemos fazer
uma conta simples. No Estado de São Paulo, até meados da década de 90, os fóruns regionais dos ramos escoteiro e sênior
já estavam além da décima edição. No mesmo Estado, até o ano de 2000, o fórum regional do ramo pioneiro já estava na
23ª edição. Pelo menos outros dez Estados realizavam seus fóruns regionais, para estes mesmos ramos, numa freqüência
igual ou próxima desta, e alguns outros Estados em freqüências menores. Se somarmos a isso ainda os fóruns nacionais
destes ramos, não fica difícil presumir que, apenas no Brasil, foram realizadas algumas centenas de fóruns.
27 Exemplo disso, foi que os cinco primeiros Fóruns Mundiais de Jovens foram realizados paralelos a grandes eventos como
Jamborees e Rover Moots Mundiais, tendo o mesmo exemplo seguido em grandes eventos de massa continentais e
nacionais. No Brasil, por sua vez, eram comuns a realização de fóruns regionais e nacionais em meio aos antigos Ajuris e
Mutirões Pioneiros, até 2003.
vagas para representantes juvenis em espaços oficiais28, criando assim frágeis conceitos
de representatividade. Os fóruns passaram a ser espaços suscetíveis a manobras políticas
e a interferência persuasiva de adultos, como forma de pressionar as assembléias oficiais.
E assim, um demasiado sentimento de desconfiança em relação às associações.
Viveu-se dessa forma um longo ciclo vicioso, que se agravava constantemente. Os
fóruns passaram a ter baixa credibilidade e produtividade. Em diversas ocasiões o evento
promovia conflitos de geração e, com isso, ao invés de gerar resultados positivos ao
escotismo, causou mais afastamento e desconfiança entre jovens e adultos. Os fóruns
então se tornaram geradores de expectativa e causadores de frustração.
Como primeiro reflexo disso, criou-se um novo paradigma, que perdura até hoje,
em se acreditar que o problema eram os fóruns e não a forma como se propunha. Foi a
maneira e não o modelo em si que causaram esses problemas. Estava-se ainda querendo
inferir sobre a idéia, quando o problema maior eram as intenções.
Os fóruns em si não poderiam abarcar todas as expectativas, pois suas
possibilidades eram limitadas: eram eventos de curta duração, formados por jovens de
pouca experiência, com alta rotatividade dos participantes e que deveria concatenar
objetivos institucionais e educacionais.
Ainda assim e apesar de toda a problemática que aqui estamos apresentando, há
de se considerar que alguns destes fóruns trouxeram também resultados positivos.
Sobretudo porque toda uma geração de jovens, hoje adultos, esteve presente nestes
momentos que, apesar das dificuldades, fomentaram também idéias, intenções,
aprendizados e até algumas iniciativas.
Desqualificar a idéia dos fóruns ou mesmo acusar alguma das partes era, na
verdade, uma maneira de fugir aos fatos, de não ir ao cerne da questão.
O fato é que não houve uma real intenção de diálogo com os jovens. Colocar os
jovens para “ouvir a si mesmos” é diferente de “ouvir os jovens”. Além da evidente
contradição de que, se houvesse verdadeira intenção de envolver os jovens, que não se
fizesse pela separação, isolando-os em um evento particular e dando pouca abertura para
que trabalhassem junto dos adultos nas assembléias oficiais.
De modo algum estes relatos sugerem que houve má intenção, mas sim uma
provável inexperiência que ainda estava por amadurecer. Ao invés de tratar o
envolvimento dos jovens como um dever, era preciso, por mais que um longo tempo
fosse necessário para que isso acontecesse, que isso se tornasse um desejo dos adultos.
Por essas razões os fóruns deveriam ser entendidos como apenas um passo, o
primeiro, como apenas uma medida, mas não a única. E que outros passos, mais largos e
efetivos fossem dados.
E, enfim, foram ...
28
No Brasil, os fóruns regionais e nacionais dos ramos escoteiro, sênior e pioneiro, elegiam dois representantes jovens para
ocupar cadeira nas respectivas reuniões da CROC e CNOC - Comissão Regional e Nacional de Organização e Coordenação,
hoje órgãos extintos. Ainda no caso do ramo pioneiro, era comum em alguns Estados a indicação de delegados pioneiros
nas Assembléias Regionais, eleitos pelos seus fóruns. Este tipo de medidas, há tempos revogadas, causavam a falsa idéia de
que a representatividade juvenil se dava daquelas formas, mesmo que os estatutos e regulamentos atestassem o contrário.
Pesava nestes jovens a responsabilidade de defender interesses particularizados pelos fóruns, diante de espaços de discussão
dedicadas a questões mais abrangentes e predominada por adultos. Por outro lado, é justo dizer também que os jovens, dado
seu comportamento gregário, muitas vezes optavam por este tipo de refúgio, fazendo dos fóruns uma “zona de conforto”.
Um passo decisivo
Na Conferência Mundial Escoteira de Bangkok, na Tailândia, em 1993, foi dado
um passo decisivo. Dedicados a atacar a raiz do problema, seus proponentes foram
direto ao ponto e aprovaram a marcante Resolução 2/93.
Em seus termos, esta resolução apresentou um estudo introdutório, em que as
responsabilidades dos adultos foram tocadas de forma mais direta, reconheceu o estado
de afastamento dos jovens, reiterou aspectos fundamentais do método escoteiro,
esclareceu o papel dos fóruns29, propôs a adoção de medidas mais efetivas para o
envolvimento dos jovens (que fossem além dos fóruns), como a promoção de
treinamento de lideranças, criação de ferramentas de trabalho, incentivo a inclusão de
jovens líderes nas conferências internacionais e iniciou a construção de uma política de
envolvimento.
Essas recomendações foram um claro apelo favorável a inserção dos jovens nas
tomadas de decisão e com isso um caminho rumo a “parceria dos jovens”.
Mais que isso, definiu a faixa de idade entre 18 a 25 anos como foco destas ações,
denominando-os Jovens Líderes30, quer seja na condição de membros juvenis ou
escotistas, estão compreendidos numa fase de transição para a vida adulta e de elevado
potencial para, voluntariamente, participar das tomadas de decisão e do dia-dia da
organização escoteira em si. Com a identificação destes Jovens Líderes, as ações para o
envolvimento dos jovens passariam a investir nesta geração como atores principais de
seu desenvolvimento e objetivos.
É também naquele começo da década de 90 que no Brasil, por assim dizer, nossa
história começa a ser escrita. Antes da Resolução 2/93 aqui chegar e causar algum efeito,
começava no escotismo brasileiro uma série de iniciativas de jovens, que ajudariam na
formação de uma massa crítica disposta a promover as futuras inovações.
Ao redor dos inúmeros fóruns de jovens, uma grande proporção de ações
organizadas acabaram se formando, ao procurarem formas de atuação naquele contexto
do escotismo brasileiro. A intenção inicial foi de dar uma efetiva contribuição ao
escotismo, uma vez que, com os conhecimentos adquiridos ou ao menos estimulados
nos fóruns, àqueles jovens escolhiam suas ações e formas de participação.
Junto a isso, continham uma comum insatisfação quanto a falta de espaço dos
jovens nas tomadas de decisão e ao sentimento de inércia quanto a participação juvenil.
Por isso muitas vezes não tinham o reconhecimento formal da organização escoteira,
mas gozavam de relativa aceitação entre os jovens.
Dentre estas, podemos destacar as Equipes Regionais Pioneiras31 dos Estados do
Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Paraná, num primeiro momento e, já algum tempo
mais tarde, em São Paulo e Distrito Federal. De maneira geral, trabalhavam em prol do
29
Complementar a Resolução 2/93, foi lançada também a Resolução 10/93, que esclareceu ainda mais o papel dos fóruns
de jovens, sugeriu compatibilidades com as assembléias oficiais e, seguindo a orientação do Fórum Mundial da Suíça,
realizado no ano anterior, estabeleceu que os Fóruns Mundiais seguintes deveriam ser realizados previamente as
Conferências Mundiais de Escotismo. No ano seguinte, em 1994, a Organização Mundial lança o “Guidelines for WYF”,
como modelo para a realização dos fóruns mundiais de jovens e recomendação para os fóruns das associações nacionais. No
ano de 2005, este documento foi re-editado pela Organização Mundial, como parte da estratégia mundial em vigor.
30 No termo original da resolução, jovens líderes são “youth leaders”, que funde as idéias de jovem, escotista e líder.
31 Apesar do nome mais comum ter sido “Equipe Regional Pioneira”, houveram também outras denominações como CIC
“Comissão Inter-Clãs” ou COREPIO “Comissão Regional Pioneira”, no Rio de Janeiro e Paraná respectivamente. Além
destas cinco equipes pioneiras iniciais, algumas já extintas, sabe-se da existência também desta equipe no Rio Grande do
Norte e outras tentativas frustradas em alguns Estados.
ramo pioneiro, tendo em vista suas deficiências32, com atividades de apoio aos Clãs,
organização de eventos, apuração de conhecimentos, pequenos projetos e até mesmo
sua representatividade frente às diretorias regionais.
Poucos anos após, surgiram mais duas interessantes iniciativas, fugindo um pouco
á caracterização dada pelas equipes pioneiras. A primeira delas foi o GIRE “Grupo de
Interesse da Religiosidade Escoteira”, que elaborou e desenvolveu um projeto sobre a
reformulação de etapas, atividades e formação de adultos na área de espiritualidade. Este
grupo foi formado em São Paulo, à partir do fórum de seniores e fez parte da direção
regional. A segunda foi o Azimute (@zimute), um jornal escoteiro pela internet,
dedicado aos membros juvenis e adultos, que alcançou um alto número de assinantes
virtuais. Apesar de ter sido iniciado no Paraná, o Azimute contava com correspondentes
em outros Estados.
A coexistência destes grupos durou cerca de sete anos. Infelizmente, pela
volatilidade comum a estes jovens, por uma atuação exclusiva ao universo escoteiro, a
dificuldade de garantir a continuidade destes trabalhos e, o principal, a falta de políticas
efetivas que apoiassem estas iniciativas, a maioria destes grupos acabou ou, quando não,
sobrevivem com constantes oscilações.
Estes relatos são uma prova do quanto os fóruns de jovens, por um lado, são
importantes fomentadores de idéias e potenciais. No Brasil, como exemplo disso, as
centenas de fóruns aqui realizados serviram para criar e elevar o potencial destes grupos
de jovens. Por outro lado, a falta de estímulos que fossem além das limitadas
possibilidades oferecidas pelos fóruns, não permitiu que as idéias e desejos ali
fomentados tivessem alguma sustentabilidade, levando estes grupos atuantes a ter uma
sobrevida curta, muitas vezes garantida até a sua segunda geração ou enquanto durasse a
força de algumas individualidades. Essa permanente contradição levava jovens e adultos
a questionar a viabilidade e credibilidade destes trabalhos.
Com isso, há de se entender que antes mesmo dos efeitos da Resolução 2/93
chegarem ao Brasil, havia aqui um cenário bem favorável para que a idéia desenvolvesse.
Apesar de até então não conhecerem seus termos e objetivos, já tínhamos aqui os nossos
“jovens líderes”.
Foi então no ano de 1996 que sentimos a chegada deste conceito e algumas
definitivas inovações. Aquele ano foi marcado por três fatos.
O primeiro foi a realização dos últimos fóruns nacionais dos ramos33 escoteiro e
sênior. O motivo alegado foi a aplicação da Resolução 2/93, que levaria estes fóruns a
serem substituídos pelos fóruns de jovens líderes. Apenas os fóruns nacionais e alguns
regionais do ramo pioneiro foram mantidos.
32
O Ramo Pioneiro naquela época e ainda hoje, possuía algumas deficiências pela falta de um programa atualizado (o
MACPRO veio resolver isso), parâmetros para a formação de adultos, excessivas distorções em função da mística do ramo,
grandes diferenças na prática do ramo em diferentes Estados e pouco incentivo para atividades comunitárias. É uma
hipótese razoável que, tantas visíveis deficiências no seu espaço de formação educativa, em uma seção que por princípios
preza pela autonomia dos jovens, desse a esses jovens estímulo e razões próprias para a busca de uma maior participação nas
questões que competem à organização escoteira.
33 A última edição dos Fóruns Nacionais dos Ramos Escoteiro e Sênior aconteceram em maio de 1996, em Osasco - SP.
Naquele mesmo evento foi comunicado aos jovens a decisão da Direção Nacional da UEB em não mais realizar estes
eventos, tendo como justificativa a adoção da Resolução 2/93. Na mesma ocasião, foi apresentado aos jovens os moldes do
Fórum Nacional de Jovens Líderes e a delegação que iria representar o Brasil no Fórum Mundial na Noruega. Os jovens
participantes do fórum sênior, mesmo com o pouco tempo disponível para realizar suas plenárias, a despeito de um
programa estranho e providencialmente pouco dedicado a estimular debates, conseguiram concluir em ata um apelo para a
não-extinção dos fóruns dos ramos. Nunca foi emitida nenhuma resposta oficial!
Poucos meses depois foi realizado o Fórum Mundial de Jovens, em Moss Noruega, como evento prévio a Conferência Mundial Escoteira naquele mesmo ano. Foi
quando o Brasil teve pela primeira vez uma delegação de jovens participantes34.
Ao final do ano realizou-se o 1º Fórum Nacional de Jovens Líderes, em Canela RS, para jovens de 18 a 26 anos, como evento paralelo da Assembléia Nacional
Escoteira. Progressivamente, diversas Regiões Escoteiras adotaram seus fóruns regionais
de jovens líderes.
Aquele primeiro ano de inovações, com a adoção da Resolução 2/93 no Brasil, se
limitou apenas a sua tradução, a criação do termo e os fóruns de “jovens líderes”. Não
gerou naquele momento alguma política nacional de envolvimento. Contudo, a medida
ainda que inicial, contou com o apoio progressivo dos jovens nesta idade, que se
identificavam com as razões e histórico daquela proposta.
O momento era de entender aquele novo modelo e valorizar as razões que o
levaram a ser adotado em todo o mundo. Por isso, não caberia ou mesmo não seria
apropriado, naquele momento, apontar uma contradição evidente: os jovens ainda não
estavam e tão pouco seriam ouvidos pela simples adoção daquele modelo.
A maneira como os fóruns dos ramos foram extintos35, a forma como os
primeiros fóruns de jovens líderes se relacionavam com as assembléias, como os
representantes jovens brasileiros ainda eram escolhidos para representar a UEB em
eventos internacionais36 e a própria falta de algum projeto no nível nacional, eram sinais
de que aquele começo era ainda uma mudança burocrática demais e intencional de
menos. Avanços ainda haveriam de acontecer.
Nos dois anos seguintes37, apesar da realização de alguns fóruns regionais de
jovens líderes e das experiências que alguns jovens ainda tinham em seus Estados,
poucas mudanças foram sentidas até que chegássemos ao Fórum Nacional de Jovens
Líderes de 1999, em Foz do Iguaçu - PR.
34
Na falta ainda de um fórum nacional de jovens líderes anterior àquele fórum mundial, a UEB promoveu um processo de
seleção por escrito, lançado no informativo Sempre Alerta. Desta forma, a escolha da delegação de jovens teve de ser feita
pela Direção Nacional da UEB. Esta foi a primeira participação oficial do Brasil no evento, com a presença de cinco jovens,
pois até então o Brasil não poderia participar deste e de qualquer outro evento internacional, devido a dividas pendentes
com a WOSM.
35 Nos fóruns para os ramos escoteiro e sênior, além da sua última edição ter sido realizada em circunstâncias curiosas, que
pouco contribuíram para a qualidade das plenárias dos jovens ou mesmo para que se explorasse assuntos em curso na
organização escoteira e das poucas explicações para que essa extinção acontecesse, foi dada como justificativa para a
extinção desses fóruns o cumprimento da Resolução 2/93, caracterizada pelo então fórum de jovens líderes. Em verdade, as
Resoluções 2/93 e 10/93 definiram parâmetros para a realização dos fóruns para jovens líderes, de 18 a 25 anos, mas deixou
por conta de cada associação nacional definir qual seria seu “modelo de consulta” aos jovens de menos idade, podendo ser
ou não os fóruns. Portanto, é fato que a adoção da Resolução 2/93 e a conseqüente realização dos fóruns de jovens líderes,
não excluíam a possibilidade de realização dos fóruns de ramo, que, naquele caso, foi uma opção unicamente da Direção
Nacional da UEB. Todavia, é plausível considerar que aquela medida foi motivada também pela necessidade de se valorizar
os novos fóruns de jovens líderes, somada a toda problemática que já cercava os fóruns de ramo.
36 Com a reabertura para a participação do Brasil nos fóruns internacionais (antes a UEB tinha seu direito de participação
suspenso), jovens brasileiros nos representaram no Fórum Interamericano de 1998 no México, no Fórum Mundial de 1999
na África do Sul, nas Reuniões para formação da Rede Interamericana em 2001 e 2002 na Bolívia e em outros fóruns
internacionais. Em todos os casos, á exemplo daquela primeira experiência na Noruega, as indicações foram feitas pela
Direção Nacional da UEB, desta vez sem qualquer processo de seleção por escrito. A questão financeira foi e ainda é fator
determinante de seleção destes jovens, pois ainda cabe aos próprios representantes os custos com a viagem, o que prejudica
seu caráter democrático. Na grande maioria dos casos, pouquíssimas informações e resultados foram divulgados
posteriormente ou repassados aos fóruns. Em função disso, havia um incontido sentimento de que aqueles jovens eram
representantes apenas da UEB, mas não também dos demais jovens. Um sinal de que, salvo as circunstâncias e problemas
que cercavam aqueles fatos, as partes se enxergavam ainda em lados opostos.
37 Nestes dois anos foram realizados os Fóruns Nacionais de 1997 em Brasília - DF e 1998 em Fortaleza - CE.
Num tempo em que a motivação pelos fóruns de jovens líderes já havia crescido,
o conceito um pouco mais popularizado e num evento que finalmente conseguiu reunir
as principais lideranças jovens dos Estados do eixo centro-sudeste-sul, surge pela
primeira vez uma proposta com intenção construtiva e temporal.
Uma delegação de onze jovens, sob influência de suas experiências regionais no
ramo pioneiro, da participação em projetos comunitários e acostumados a trabalhar em
conjunto, após observar muito, mas falar pouco, na primeira seção daquele fórum em
Foz, decidem sentar e pensar. Em uma conversa à beira da piscina do hotel que sediava
o evento, avaliam pelas suas próprias experiências o cenário e as possibilidades para os
jovens líderes do Brasil. Após algumas meteóricas idéias, se debruçam em seis horas de
debate fechado e concluem uma proposta: o Plano 2001.
No dia seguinte esses mesmos jovens apresentam esta idéia, contida dos seguintes
aspectos: realizar um relato sobre o potencial de liderança entre os jovens no escotismo do Brasil;
estudar formas de propor a revitalização dos fóruns de jovens líderes e dos ramos; propor formas de
inserção dos jovens nas tomadas de decisão, seja no escotismo, seja na comunidade; estudar o assunto
durante todo o ano de 2000, concluí-lo na forma de um plano de ação e implantá-lo em 2001.
Na verdade, a descrição feita acima, ou mesmo na ata do fórum, ou mesmo a
apresentação feita na assembléia, não foram suficientes para expressar todas as ambições
daquela proposta. A delegação proponente assumiu o compromisso de desenvolver
aquela proposta no ano de 2000, envolvendo também jovens de outros Estados.
O trabalho começou efetivamente no segundo semestre de 2000, com os estudos
sendo feitos por uma parte daquela delegação proponente e na coleta de dados feita com
jovens em diferentes Estados. No entanto, antes mesmo da conclusão deste trabalho e
às vésperas do fórum nacional seguinte, surge um novo fator que tornaria sua conclusão
mais complexa: a criação da Rede Interamericana38 pela OSI.
A inconclusão dos trabalhos do Plano 2001 até aquele momento, a chegada e as
circunstâncias de como aquela proposta seria apresentada, viriam a tornar o Fórum
Nacional de Jovens Líderes de 2000, em Guarapari - ES, o mais confuso e apreensivo
até hoje já realizado. Na verdade, aquele fórum foi preparado para não acontecer e por
isso aconteceu muito mais na informalidade, do que nas seções oficiais de fato.
Conforme os portadores da proposta da Rede Interamericana, ela deveria ser
implantada mediante a extinção dos fóruns de jovens líderes39. Para tanto, na tentativa
disso dar certo, o fórum foi preparado de forma que não estimulasse o debate, mas
somente a imposição daquele novo modelo, reduzindo o fórum a uma única seção e que
fosse aquela a última edição do fórum nacional40. Pela “teoria” daquela proposta, o
fórum daria lugar a esta rede, que seria um organismo capaz de consultar e envolver os
jovens nas tomadas de decisão, por meio de processos de comunicação.
38
A OSI “Oficina Scout Interamericana”, conforme o “objetivo 21” de seu Plano de Desenvolvimento Regional 2000-2002
“És Tiempo de Crecer”, propôs a criação de uma Rede Interamericana de Jovens, com os mesmos objetivos lançados pela
Resolução 2/93 e como forma de capacitar e promover os jovens.
39 A proposta de incorporação á Rede Interamericana, vinha somada a idéia de extinção dos fóruns, por analogia à decisão
da OSI de extinguir os Fóruns Interamericanos, dando lugar, justamente, a Rede. Curiosamente, os argumentos para tal não
eram compatíveis aos argumentos dados pela Resolução 2/93 e 10/93 para a manutenção dos fóruns, mediante medidas
complementares. No caso, ao invés de complementares, seriam excludentes. Na mesma ocasião, afirmou-se que, por sua
vez, a WOSM iria também seguir o modelo e extinguir os Fóruns Mundiais, coisa que nunca aconteceu.
40 Na falta de melhores detalhes sobre essa transição que levaria a extinção dos fóruns, foi levada a Assembléia Nacional, via
jovens, a proposta de manutenção dos fóruns de jovens líderes, até que qualquer modelo em sua substituição se apresentasse
viável. Então, por decisão da Assembléia Nacional, os fóruns de jovens líderes foram mantidos.
A supressão dos fóruns não estava em discussão, foi colocada de forma
imperativa. Todavia, aos jovens foi dada à possibilidade de elaborar um modelo para esta
Rede no Brasil, como parte da futura Rede Interamericana. Com prazo para janeiro de
2001, a UEB estaria acolhendo propostas dos jovens líderes para a criação desta Rede.
O clima de insatisfação pela maneira como o fórum foi conduzido, a não
aceitação da idéia de suprimir os fóruns, o pouco volume de informações sobre a Rede
Interamericana e a desconfiança em relação aos portadores daquela proposta, motivou
os jovens a se reunirem informalmente. Naturalmente, percebendo alguns pontos em
comum e a oportunidade ali lançada, muitas expectativas se voltaram ao Plano 2001.
Àquela altura, o Plano 2001 já estava na metade de sua elaboração e seus
proponentes, com o trabalho inacabado, levaram o assunto à discussão com os demais
participantes daquele já encerrado fórum. Foi posição unânime que a proposta da Rede
Interamericana era interessante aos jovens líderes, apesar de ter sido colocada de forma
pouco amistosa. Logo se percebeu que as idéias tinham objetivos comuns e
complementares. Coincidentemente, o período proposto para a implantação das duas
propostas era o mesmo. Então, discutiu-se uma forma de fundir aquelas duas idéias.
Coube então àqueles que já estavam elaborando o Plano 2001, em meio a seu
trabalho, fundir os pontos principais das idéias apresentadas em Foz e Guarapari. A
questão dos fóruns teve mais uma vez um especial tocante pois, ao invés do que sugeria
a Rede Interamericana, eles seriam mantidos pela proposta do Plano 2001, mas agora se
observando alguns cuidados. Os responsáveis pelo Plano 2001 tentaram, naquele
momento, ao invés de tomar um caminho pela imposição, escolher um caminho
alternativo, que permitisse compatibilidade com as duas idéias. Ao invés de suprimir os
fóruns, temendo riscos, resolveu somar as boas possibilidades oferecidas pelos fóruns e
os cuidados alertados pela Rede Interamericana. Em meio a isso, trabalharam na difícil
tarefa de garantir ao máximo seus valores originais. Foi uma “bola de neve” de idéias.
Todavia, ao tentar conciliar duas idéias de origens e convicções diferentes,
mediante um prazo curto, herdou-se daquele evento algumas controvérsias. Parte disso
se deveu a um fórum dividido em dois momentos antagônicos: mais organizado e menos
dialético, quando foi oficial, ou mais participativo e menos cercado de cuidados, quando
continuou em conversas informais. A vantagem foi de juntar, na mesma proposta, as
intenções que vinham “de cima” e “da base”, equilibrando sua aceitabilidade.
Encerrado o fórum, durante o restante do ano, aquela delegação proponente do
Plano 2001 em Foz trabalhou na conclusão da, agora adaptada, proposta de fusão. Com
a coordenação efetiva de seis jovens e a coleta de dados feita com muitos outros, a
documento final foi concluído com os seguintes elementos: aspectos gerais sobre a inserção
dos jovens nas tomadas de decisão e do contexto social; histórico das principais iniciativas de jovens no
escotismo brasileiro, denominados grupos atuantes; dados e argumentos sobre a problemática dos fóruns;
proposta de trabalho em rede, prevendo a manutenção dos fóruns de jovens líderes e a criação dos núcleos;
apoio ao retorno dos fóruns para os ramos; definição de objetivos. O documento era longo, com
propostas detalhadas, relatos de fatos acontecidos no âmbito da UEB, análises e um
grande volume de anexos. Uma proposta com teor crítico, mas construtivo.
Aquele evento, de tal forma atribulado, faria eco por mais tempo. Durante ainda
um considerável período, se reacenderam as discussões sobre os fóruns de jovens,
intensificou-se o questionamento sobre a legitimidade da escolha dos representantes
jovens em eventos internacionais e permaneceram incompreensões sobre como se deu
aquela fusão de propostas. Apesar de serem todas preocupações legítimas, que haveriam
ainda de ser superadas, concentrou-se o trabalho nos caminhos que seriam abertos.
O documento foi recebido pela Direção Nacional da UEB, apreciado com os
devidos cuidados e emitida uma resposta oficial: “Poucas vezes examinei, no âmbito da UEB,
documento elaborado com os cuidados que cercaram a formulação deste Plano 2001. Grande não só em
seu conteúdo mas, e principalmente, em seu teor...”41. Isso resultou em seguidos debates entre os
criadores do Plano 2001 e o executivo nacional encarregado de um parecer sobre.
Ao final, o documento foi aprovado pela Direção Nacional da UEB, comunicado
as Regiões Escoteiras e incorporado à pauta da Comissão Nacional de Programa de
Jovens. Na aprovação, o retorno dos fóruns de ramos foram suprimidos, mas a criação
dos núcleos, a manutenção dos fóruns de jovens líderes e a implantação da Rede
conforme o modelo proposto pelo Plano 2001 foram garantidas.
Aquele era um momento especial, que mexeu com a UEB e os jovens líderes. Pela
primeira vez uma proposta de autoria exclusiva de jovens estava sendo apreciada e
recebida pela UEB em âmbito nacional. Pela primeira vez, estimulados por aquele
processo, jovens eram chamados a compor a CNPJ e a participar das discussões da
implantação do MACPRO. Pela primeira vez, antigas e novas inquietações, frutos de
uma ainda relação de instabilidade, estavam sendo discutidas abertamente.
E começa uma caminhada ...
E assim, durante o ano de 2001, a Rede começa a ser implantada, baseada
principalmente nas idéias do Plano 2001 e em algumas orientações para sua implantação.
Foi um período de avanços modestos, quando formaram-se os primeiros Núcleos
Regionais, as primeiras comunicações, com diversas discussões para a construção de
conceitos e as primeiras pesquisas para a formação de uma cultura de trabalho em Rede.
Ao final do ano, foi realizado o Fórum Nacional de Jovens Líderes de 2001, em
Natal - RN. Com a conclusão do processo de implantação, a formação dos cinco
primeiros Núcleos Regionais, a eleição do primeiro Núcleo Nacional e a definição das
linhas gerais para os próximos dois anos de desenvolvimento dos jovens líderes, estava
formada uma Rede Nacional.
Os principais avanços daquele fórum foram o aprimoramento das definições de
“jovens líderes”, a uniformização de algumas nomenclaturas, conhecimento de conceitos
de comunicação, a aprovação de linhas gerais que dariam origem a um primeiro plano
estratégico e, finalmente, a adoção de um objetivo social para a Rede. Saiu-se daquele
fórum com um Núcleo Nacional formado, um plano a ser desenvolvido, dois anos de
compromisso de trabalho e os desafios divididos em dois objetivos: institucional - inserir os
jovens nas tomadas de decisão da organização do escotismo, e social - promover a participação dos jovens
nas questões sociais por meio da prática do programa de jovens.
De todos, este último avanço foi o mais significativo. As intenções de promover,
neste trabalho em Rede, o potencial de liderança dos jovens no contexto social, além das
tomadas de decisão no escotismo, foi também uma das idéias que inspirou o Plano 2001.
No entanto, a imaturidade daquelas idéias dois anos antes e a grande demanda em
adaptar as vertentes de Foz e Guarapari, eminentemente institucionais, acabaram por
inibir estas pretensões e sufocar sua sustentação.
41
FAGUNDES, Osny Câmara. Reflexões sobre o Plano 2001. Curitiba - PR: UEB, 2001. p 1.
Coube a uma nova delegação de jovens, notada de larga experiência neste campo,
em retomar àqueles valores, apresentar conceitos indiscutíveis para sua adoção e
sustentar com propriedade sua argumentação. Aquela recém formada Rede de Jovens
Líderes estava assumindo um objetivo que nem a WOSM42, nem a OSI e nem a UEB
haviam ainda recomendado no escopo das políticas de envolvimento dos jovens.
Haveria de se provar ainda sua pertinência.
Nos anos de 2002 e 200343 a Rede Nacional de Jovens Líderes viveu sua primeira
gestão. No âmbito nacional, o Núcleo Nacional e a idéia de uma rede de jovens
começou a experimentar sua institucionalidade. Os trabalhos foram orientados num
plano estratégico, o Núcleo Nacional passou a ser parte da CNPJ, a participar das
reuniões com diferentes organismos da Direção Nacional, compor outras comissões
estratégicas e a manter contatos com as Direções Regionais.
Foram formados novos núcleos regionais, levando a idéia finalmente a região
Nordeste. Foram abertas relações com outras instituições de juventude, pela participação
em eventos externos e em troca de informações, representando objetivos da própria
Rede e da UEB. Foram estudadas metodologias de trabalho em redes sociais e
disseminado o conceito de Protagonismo Juvenil.
Junto aos jovens líderes foram criadas e experimentadas novas ferramentas de
comunicação. O Núcleo Nacional trabalhou integrado aos Núcleos Regionais com
orientações à distância, troca de informações e encontros anuais. Foram criados os
primeiros projetos de alcance local ou de estruturação da rede. Os fóruns foram
valorizados, seus programas ganharam em qualidade e o número de participantes
aumentou.
Os conceitos e teorias do trabalho desta Rede, inclusive seu objetivo social, foram
apreciados junto a Direção Nacional da UEB, a representantes da OSI e da WOSM44,
recebendo irrestrita aprovação. Este diálogo permitiu que as novas e definitivas diretrizes
internacionais para o envolvimento dos jovens fossem exploradas e assimiladas sem
qualquer atraso, em especial a nova “Política Mundial de Envolvimento dos Jovens”45.
No âmbito regional, algumas Regiões Escoteiras desenvolveram gestões mais
íntimas ao conceito de Liderança Jovem, com maior participação de jovens nas suas
gestões, na organização de eventos e em projetos. Como reflexo disso houve visível
aumento na participação de jovens nas assembléias regionais e no contato das Direções
Regionais com os respectivos núcleos regionais.
42
Na Conferência Mundial Escoteira de Durban, na África do Sul, em 1999, a política de envolvimento dos jovens estava
sendo explorada em novos enfoques, inclusive pelo conceito de participação social dos jovens. Porém, eram acréscimos que
ainda estavam em estudo, que seriam concluídos pouco mais tarde e que até então não eram do conhecimento da UEB.
43 Nestes dois anos foram realizados os Fóruns Nacionais de 2002 em Juiz de Fora - MG e 2003 em São Paulo - SP.
44 No ano de 2002, o Núcleo Nacional apresentou seus modelos de trabalho num encontro com o diretor executivo da OSI,
Gerardo Gonzáles, em São Paulo - SP. Ainda em 2002, estiveram reunidos com os membros do CAN e a DEN, em Juiz de
Fora - MG. Em 2003, um dos coordenadores do Núcleo Nacional entrevistou o diretor mundial de programa de jovens da
WOSM, Dominique Bénard, no Bureau Mundial Escoteiro, em Genebra - Suíça.
45 Na Conferência Mundial Escoteira de Thessaloniki, na Grécia, em 2002, foram definidas as sete prioridades de
desenvolvimento do escotismo até o ano de 2007, na forma do documento “Achieving Our Mission” (Alcançando Nossa
Missão). Parte deste documento, a prioridade de número 1, é justamente a estratégia “Scouting and Youth Involvement”
(Escotismo e Envolvimento dos Jovens) que é a atual orientação mundial para promover a participação juvenil nas esferas
da seção escoteira, da organização escoteira e da sociedade como um todo. Esta estratégia foi apreciada na reunião do
Comitê Mundial ao final de 2003, lançada em 2004 e apresentada na Conferência Mundial Escoteira de Hammamet, na
Tunísia, em 2005. Esta “Política Mundial de Envolvimento dos Jovens” esta contida em cinco documentos, em especial
“Youth Involvement Reference Guide”.
Foram realizadas apresentações, seminários sobre liderança, pequenos projetos
acerca dos dois objetivos e o funcionamento das primeiras Redes Regionais. Ufa, foi o
começo!
Alheio a isso tudo, cabe registrar que a Rede Interamericana não mais funcionou.
A falta de um plano de trabalho amplamente difundido, do isolamento de seus
responsáveis jovens e de modelos de rede sugeridos ou de transições, vieram a estagnar
seu trabalho ao longo do tempo. Isso nos leva a refletir, anos depois, que aquela
proposta lançada em Guarapari, apenas em seus objetivos, estavam ainda confusas, e
mereciam ainda melhores cuidados e compromissos.
Todavia, há de se considerar como mérito que, graças à esta idéia vinda da OSI,
que hoje nos abrimos ao conceito de redes, em seus objetivos e ambições. Uma Rede
Nacional de Jovens Líderes foi, se não tomada como exemplo, encorajada pela idéia
vinda da OSI. A idéia de uma Rede Interamericana é algo que deve ser amadurecido,
estimulado e ambicionado ao seu tempo devido.
Nos anos de 2004 a 200646 foi dado espaço para uma nova geração de jovens à
frente do Núcleo Nacional e dos Núcleos Regionais. Enquanto a geração anterior teve
como desafio garantir a “sobrevivência” e a base teórica para a participação juvenil no
escotismo brasileiro, a geração seguinte coube o desafio de ampliar as atividades da Rede
e torna-la mais pragmática, provando ser capaz de implementar suas idéias.
Neste período, a primeira conquista foi a aprovação da Resolução 04/04 pelo
CAN - Conselho de Administração Nacional da UEB47, fortalecendo e legitimando a
política de envolvimento dos jovens no Brasil. Este avanço serviu para regularizar as
responsabilidades entre o Núcleo Nacional e a Direção Nacional da UEB, incentivo a
continuidade da presença e do trabalho de jovens líderes nas comissões estratégicas, o
reconhecimento dos Núcleos Regionais e precedente para que as Regiões Escoteiras
instituíssem seus próprios mecanismos.
A representação em eventos internacionais passou a ser feita por processos
seletivos abertos48 e qualificados, resultando em participações melhor organizadas e com
melhores retornos à Rede. Com isso, a contribuição brasileira foi muito importante na
retomada da Red Interamericana, que iniciada em 2004, está em curso até hoje.
O mais importante, o Núcleo Nacional assumiu a coordenação de projetos de
mobilização comunitária49 oficialmente promovidos pela UEB. Estes projetos deram
46 Nestes três anos foram realizados os Fóruns Nacionais de 2004 em Salvador - BA, 2005 em Florianópolis - SC e 2006
novamente em Fortaleza - CE.
47 A Resolução 04/04 foi aprovada em agosto de 2004, em São Bernardo - SP, após mediações e debates iniciados dois anos
antes. Seus artigos reconheceram o Núcleo Nacional como organismo gestor da Rede e suas competências gerais no âmbito
da UEB, vinculados diretamente ao CAN, quando até então estava subordinado a CNPJ. Reconheceu também os objetivos
da política de envolvimento dos jovens, sem contudo constituir uma “política nacional de envolvimento dos jovens”.
48 Com a criação da Rede, a escolha dos representantes internacionais juvenis deixou de ser feita unilateralmente pela
Direção Nacional da UEB. Para a escolha dos delegados ao Fórum Mundial de 2002 na Grécia e Reunião da Red
Interamericana de 2004 em El Salvador, o Núcleo Nacional fez indicações que foram em sua maioria aceitas pela Direção
Nacional. Mais adiante, pela primeira vez estes representantes internacionais foram escolhidos por meio de um “processo de
seleção e preparação”. O processo foi amplamente divulgado, com perfis, condições de participação e objetivos claramente
definidos. Os candidatos foram avaliados por meio de um questionário técnico e selecionados por um comitê de jovens e
adultos. O resultado foi a escolha dos dois delegados jovens ao Fórum Mundial de 2005 na Tunísia e a vaga de representante
na Red Interamericana de Jovens. Estas escolhas, até então subjetivas e pessoais, passaram a ser mais objetivas e técnicas.
49 Nos anos de 2004 a 2006 o Núcleo Nacional assumiu a coordenação dos Mutirões Nacionais de Ação Comunitária, com
os projetos “Sorriso Alerta”, “Ler é o que Pega” e “É Direito, É Legal”, respectivamente sobre saúde bucal, incentivo à
leitura e direitos das crianças, elevando significativamente a qualidade destes projetos no âmbito da UEB e ampliando a
atuação dos Núcleo Regionais em diversos Estados.
uma dimensão mais concreta as relações institucionais e fortaleceram a imagem da Rede
interna e externamente.
Por fim, as ferramentas de comunicação foram melhoradas, aumentando a adesão
e renovação de membros na Rede, o volume de debates, e a presença e participação de
jovens líderes em assembléias regionais e nacionais50.
E daqui pra frente?
Em sua história, o escotismo mundial vem avançando a cada década. Em sua
história, com a parceria da OSI, a União dos Escoteiros do Brasil logrou também
avanços significativos, em especial nos últimos doze anos.
Contudo, o escotismo brasileiro precisa ainda atingir evidentes progressos como
instituição e como movimento de jovens. Da mesma forma, acompanhando estes
contextos, em especial nesta ainda crescente relação entre jovens e adultos, a Rede de
Jovens também pressente avanços inadiáveis.
É necessário fortalecer modelos, aprimorar os trabalhos regionais, garantir espaço
na pauta das direções em todos níveis, fortalecer os pilares da rede, fomentar projetos
institucionais e sociais mais pertinentes. É preciso tempo e esforço para se entender as
necessidades, fórmulas e objetivos deste trabalho. Como resultado disso, se espera
conquistar maiores índices e resultados no envolvimento dos jovens, nas direções
nacional, regionais e em especial nos Grupos Escoteiros, onde a questão é não só
fundamental, mas também urgente.
Com a maturidade, as experiências e caminhos descobertos até hoje, mas também
ainda diante de preconceitos e obstáculos, muitos passos ainda hão de ser dados!
Os fatos narrados neste capítulo se encerram no ano de 2006. Foi uma decisão do autor, no
fechamento desta publicação, em não avançar com narrativas mais recentes, sob o risco destas serem
analisadas muito próximas do tempo presente e por isso menos isentas. Há, contudo, a intenção de se
fazê-las no futuro (nota: março/2011).
50 Em 2006, na Assembléia Nacional Escoteira em Fortaleza - CE, pela primeira vez um jovem líder, aos 23 anos, foi eleito
para três anos de mandato no Conselho de Administração Nacional da UEB.
3. Entendendo um pouco mais o Escotismo
“Quando não se sabe onde chegar, Pode-se chegar a qualquer lugar,
E nem ao menos saberá, Que não se chegou ao lugar desejado”
Lewis Carroll (Alice no País das Maravilhas)
Compreendendo o escotismo mais além ...
Ao refletir sobre a longa e valiosa contribuição do escotismo a milhões de jovens
em sua história, Laszlo Nagy indagou: “O que estes bravos jovens buscam no Escotismo, em um
mundo tão confuso?”51. E esta pergunta nos remete a outras: Como o modelo proposto pelo
Escotismo sobreviveu às agruras típicas da sociedade moderna? Até onde alcança o sucesso do
Escotismo? Porque jovens no mundo inteiro fazem esta opção tão peculiar para os dias atuais? Ou
perguntemos a nós mesmos: Por qual razão me dedico e tenho tanta afeição pelo Escotismo?
Não temos a pretensão de responder categoricamente a essas perguntas, longe
disso. No entanto, renunciamos momentaneamente a inalação deste mágico estilo de
vida (para não nos acomodar ao reducionismo) e arriscamos apontar algumas linhas de
investigação, que pensamos serem interessantes para as idéias deste livro.
Não foi por acaso, uma vez criado no contexto das transformações e angústias
provocadas pela Revolução Industrial, que o escotismo encontraria coerência nas demais
tendências surgidas naquele tempo. Uma das principais mudanças no modo de vida da
sociedade industrial foi a divisão do tempo em duas faces: “tempo de trabalho” e
“tempo livre”.
Os bens materiais e de consumo passaram a ser distinguidos de valores culturais e
morais. Segundo o ensaísta alemão Robert Kurz: “A revolução capitalista consistiu
essencialmente em desvincular a chamada economia de todo contexto cultural, de toda necessidade
humana. Ao transformar a abstração social do dinheiro, antes um meio marginal, num fim em si
mesmo”52. Essa noção elevou a valor do trabalho produtivo, cuja medida é o tempo. O
modelo social estabeleceu portanto o trabalho produtivo, fonte de renda, como meio de
sobrevivência, sustento e posição social. As necessidades básicas passaram a ser
aprisionadas a idéia de trabalho, associada às idéias de aproveitamento, racionalização e
controle do tempo. Quem não conhece o jargão “tempo é dinheiro”?!
Segundo ainda Robert Kurz: “Surgiu assim um tempo-espaço capitalista, sem alma nem
feição cultural, que começou a corroer o corpo da sociedade”. Como já retratamos, foi essa nova
condição humana que flagelou a sociedade e despertou em BP seu desejo de contribuir
aos jovens.
Inicialmente o conceito de tempo para o trabalho, ditado pelo culto ao capital,
impunha significados negativos a idéia de tempo livre, como “tempo inútil” ou “tempo
perdido”. Já no caso de desemprego, o tempo sem trabalho ganha o significado de
“tempo de escassez”, em semelhança à idéia atual de exclusão social.
Com as conquistas aos direitos trabalhistas e a renovada noção de bem estar
humano, surge o conceito de tempo livre, superando qualquer idéia pejorativa ligada ao
ócio. Com isso, o tempo livre passa a ser utilizado livremente para o descanso e o lazer.
Conhecem a música do Titãs que diz “A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão
e arte”?!
51
52
NAGY, Laszlo. 250 Milions of Scouts. Lausanne - Switzerland: Editions Pierre-Marcel Favre, 1985. p 208.
KURZ, Robert. Folha de São Paulo: Especial - A Exporiação do Tempo. São Paulo - SP. 1999.
Pois é, o tempo livre se justificava então pela real necessidade de busca de
descanso, de prazer e satisfação, sem fins utilitários ou obrigações53, sejam profissionais,
familiares ou religiosas. O uso bem aproveitado do lazer passou a ser fonte de
desenvolvimento humano, seja pelo acesso à cultura, ao entretenimento e a autoeducação. Essa necessidade incidiu sobre o escotismo.
A proposta educacional desenvolvida por BP, mesmo que provavelmente sem
esta intenção, preenchia totalmente esta lacuna social e ofertava aos jovens então uma
possibilidade real e positiva diante de seu meio de vida. É coerente afirmar, portanto,
que o caráter educacional do escotismo era uma prerrogativa dos adultos, pois para os
jovens o escotismo surgiu como forma de ocupação do tempo livre e os atraiu como
fonte de lazer, o que impulsionou seu rápido sucesso.
Desta forma, antigas definições sobre o escotismo, que por vezes se utilizam até
hoje, definem-no como “movimento educacional do lazer pelo tempo livre”. Esta definição ainda
é comum em associações escoteiras em países de língua espanhola ou francesa. No
mesmo contexto, o escotismo se caracterizava como um fenômeno tipicamente urbano
e de classes menos favorecidas, ao menos inicialmente.
Contemporâneo ao surgimento do escotismo, outras atividades surgiram ou se
intensificaram com a era industrial e pelas dinâmicas do tempo livre. Em períodos
semelhantes ao surgimento e crescimento do escotismo, surgiu também o turismo
moderno, o campismo, a indústria cultural, do entretenimento e a popularização de
diversas práticas esportivas. Todas estas idéias, não é difícil observar, contém alguns
elementos comuns ao escotismo: são marcadas como estilos de vida, valorizam suas
práticas ao ar livre, ocupam o tempo livre, são livre de obrigações, atraídas por desejos
pessoais e buscam o desenvolvimento pessoal.
Essas primeiras noções de utilização do tempo livre ainda estavam limitadas.
Primeiro pela idéia de que o tempo livre ocupava-se somente pelo lazer. Também pela
idéia, deveras preconceituosa, de que o lazer fosse necessário em maior escala às classes
menos favorecidas, impingido como forma de compensação à falta das demais
necessidades básicas.
Então, nas décadas de 70 e 80, já no contexto da era pós-industrial, que chegamos
a ampliação do conceito de tempo livre, que assumiria duas tendências opostas.
A primeira, como definiu o sociólogo francês Joffre Dumazedier, um dos maiores
estudiosos do assunto, ampliou as funções do lazer e reconheceu seu potencial
educacional: “conjunto de ocupações ás quais o indivíduo pode entregar-se de bom grado, seja para
repousar, seja para se divertir, seja para desenvolver sua informação ou formação, seja para sua
participação social voluntária, ou sua livre capacidade criadora, depois de liberado de suas obrigações” 54.
Se compararmos esta a uma definição mais recente, e simples também, dada pelo
educador brasileiro Antônio Carlos Gomes da Costa55, compreenderemos a noção de
tempo livre de forma mais exata: “A tendência é que os homens disponham de mais tempo livre56 e
53
Com o passar do tempo, o “tempo de trabalho” para os jovens ganhou o sinônimo de “tempo de ocupação”, constituído
de suas obrigações e garantias sociais, em especial a escolaridade.
54 DUMAZEDIER, Joffre. Lazer e Cultura Popular. São Paulo - SP: Editora Perspectiva, 2000. p 34.
55 Antônio Carlos Gomes da Costa é educador e autor de diversas obras sobre Protagonismo Juvenil no Brasil, tendo
trabalhos desenvolvidos pela Fundação Odebrecht, Instituto Ayrton Senna e Instituto Modus Facienti.
56 Imaginava-se que a revolução industrial deveria aumentar o volume de bens materiais, produzindo mais em menos tempo,
dando ao homem a condição de trabalhar menos e ter mais tempo livre, equilibrando o acesso ao emprego e a estabilidade
social. Uma utopia que nunca se realizou.
o grande desafio é saber como utilizá-lo. Quanto a isso, começamos a desenhar três caminhos: o tempo
livre utilizado para o lazer e entretenimento, estudo e aperfeiçoamento de capacidades, e o tão importante
trabalho voluntário57”58.
Não seriam essas definições sobre o tempo livre mais de acordo com os
fundamentos do escotismo?! Esses três caminhos não estão inteiramente presentes na
proposta do escotismo?! A ampliação dos conceitos iniciais sobre o tempo livre ajudou o
escotismo a ampliar perspectivas, já contidas em seus fundamentos, mas que ainda
estavam confinadas nas idéias redutivas de lazer.
Não por acaso, neste período em que o escotismo começava suas reformas, que se
destacou o surgimento de novas práticas. O método escoteiro estava sendo aplicado
com sucesso como forma de serviços à comunidade, em programas de alfabetização,
preservação ambiental, saúde e de ações comunitárias. Apesar deste apelo ter se
estendido a todos, a resposta foi muito mais efetiva em países da África Negra, Sudeste
Asiático e Leste Europeu, que seja, parte daqueles que hoje chamamos “países em
desenvolvimento”. Firmados num consistente apoio popular, e posteriormente
governamental, e em uma construtiva coerência à realidade social, somados aos elevados
índices populacionais, em especial na Ásia, que estes países atingiram altíssimas taxas de
crescimento no seu efetivo.
Contudo, em sua segunda tendência, este mesmo reconhecimento da necessidade
social do tempo livre permitiu que seus diversos segmentos ganhassem em diversidade,
estrutura e sofisticação. E assim, uma vez elevada sua oferta, o usufruto do lazer
caracterizou-se também como mercado e formatado como bem de consumo. E assim,
contraditoriamente, o lazer perdeu espaço nas classes menos favorecidas.
Com isso, no mesmo passo, o escotismo migrava progressivamente das classes
desprivilegiadas para as classes mais abonadas, como nos EUA e países da Europa, que
tiveram seus efetivos reduzidos drasticamente. Nestes países o escotismo atingiu uma
tendência que já remontava as duas décadas anteriores e que, mantida até hoje, os levou
a elitização.
Mesmo que o escotismo continuasse crescendo, com o efetivo mundial na época
em 14 milhões, a maioria estava agora nos países ditos de “terceiro mundo”. O
escotismo estava libertado da tendência predominantemente urbana e ganhou novos
significados. Mas por outro lado perdia espaço em camadas sociais onde, pela lógica,
deveria consolidar sua proposta.
Neste raciocínio, vale retomar a observação feita por Laszlo Nagy, naquele
começo da década de 70: “... a finalidade da renovação era a de adaptar uma organização de lazer,
inicialmente criada para a juventude desprivilegiada - a qual mais tarde torna-se-ia em um movimento
para a geração mais jovem, de classe média - em um movimento popular que, embora permanecesse fiel
aos princípios morais e espirituais, e aos métodos educacionais definidos pelo fundador, fosse mais capaz
de responder as aspirações da juventude moderna, em todos os países”59.
Onde o escotismo valorizou sua prática essencialmente pelo lazer, limitando seu
potencial educacional e a aceitação dos jovens de mais idade, sofreu quedas de efetivo,
57
Quando aqui tratamos de trabalho voluntário dentro das dinâmicas de tempo livre, o fazemos de forma distinta entre
escotistas ou dirigentes e membros juvenis do escotismo. Para os adultos, seu voluntariado pela livre iniciativa, como
educadores de jovens ou á serviço da organização escoteira. Para os jovens, iniciado pela livre aceitação da promessa
escoteira, seu voluntariado é praticado com atividades em prol da comunidade, um dos elementos do programa de jovens.
58 COSTA, Antônio Carlos Gomes da. O Mundo, o Trabalho e Você. São Paulo - SP: Instituto Ayrton Senna, 2002. p 33.
59 NAGY, Laszlo. 250 Milions of Scouts. Lausanne - Switzerland: Editions Pierre-Marcel Favre, 1985. p 173.
marcados pelo contraste na proporção entre crianças e jovens. Porém, onde soube fazêlo também por práticas cidadãs ou vocacionais, afirmou-se como modelo educacional,
cresceu, desenvolveu-se e ganhou valor no cenário social.
Não obstante, é fácil arriscar, mesmo que isto seja um assunto que deva ser
tratado à parte, que o escotismo brasileiro precisa se encontrar nessa equação. Será que
estamos aplicando um modelo de escotismo coerente a nossa realidade social e capaz de
responder as aspirações da juventude brasileira?
Escotismo: Movimento e Organização
Foi naquele grandioso encontro no Cristal Palace que o Escotismo descobriu uma
síntese que, mais do que construir - pois isso se deu pela consecução histórica, iniciou
uma relação entre jovens e adultos. A eclosão do Movimento Escoteiro, protagonizado
pelos jovens, encontrou suporte nos adultos que, complementarmente, criaram uma
organização para, justamente, atender a este movimento.
Todavia, esse binômio deve ser compreendido com critérios. Curiosamente, foi
num diálogo à distância entre os jovens proponentes do Plano 2001 e o chefe Osny
Fagundes60, que ele alertou sobre a necessidade e os cuidados de se entender esta relação:
“Tenho insistido, em diferentes oportunidades, na necessidade de distinguir dois conceitos que se agrupam
e se confundem debaixo do amplo guarda-chuva do Escotismo. Não se pode tratar da mesma maneira,
como se fossem sinônimos ou se tivessem as mesmas necessidades, o Movimento Escoteiro e a
Organização que possibilita e apóia sua prática”61.
O Movimento Escoteiro é composto por jovens e crianças em diferentes países,
que se distinguem dos demais jovens e crianças por terem adotado o escotismo como
estilo de vida, aderindo suas propostas, desafios e aceitação da promessa e lei escoteira.
O movimento dá lugar ao autodesenvolvimento assumido por estes jovens, com a
missão de torná-los cidadãos ativos e participativos em suas sociedades.
Suas atividades são voltadas para a educação não-formal destes jovens, conforme
método e programa próprios, inspirando condutas e desenvolvendo assim seu potencial
físico, social, intelectual, espiritual, afetivo e, em especial, do caráter. Para tanto, estes
jovens contam com a colaboração de adultos.
A Organização Escoteira é composta por adultos, que em todos os seus níveis (do
local ao internacional), se dedica a apoiar este movimento de jovens, oferecendo-lhes
condições e orientações para que desenvolvam todos os seus potenciais. Entre estes
adultos, os educadores integram o espaço educativo dos jovens, acompanhando-os neste
processo de aprendizagem, apoiando o desenvolvimento das atividades, colocando-se
em posição não autoritária e oferecendo seu exemplo pessoal.
A organização conta também com a participação de dirigentes, profissionais,
colaboradores e familiares. Seu trabalho deve, direta ou indiretamente, apoiar os
processos educativos que se desenvolvem na relação entre educadores e jovens. Suas
atividades estão voltadas para o desenvolvimento de diretrizes educacionais, qualificação
de voluntários, gestão e estruturação, que garantam sustentabilidade a prática do
escotismo e seu caráter de entidade dedicada à educação não-formal.
60 Osny Câmara Fagundes foi executivo de métodos da Direção Nacional da UEB e primeiro responsável pelo
acompanhamento do Plano 2001, quando na época emitiu pareceres e participou de debates à distância com alguns jovens.
61 FAGUNDES, Osny Câmara. Reflexões sobre o Plano 2001. Curitiba - PR: UEB, 2001. p 1.
Sua personalidade jurídica, relacionamento com os demais segmentos sociais e
obrigações legais, se dá à exemplo das demais organizações de cunho privado e sem fins
lucrativos existentes. Adiante, há de esperar que esta organização tenha sua natureza
ética elevada, seguindo o exemplo do código de honra que aos jovens propõem.
O papel dos adultos em geral, em especial dos educadores, se bem executado,
constitui o devido cumprimento da missão da Organização Escoteira, que dá condições
assim ao protagonismo do autodesenvolvimento dos jovens, que ao Movimento
Escoteiro foi reservado. Desta forma, há de entender que, contrariando algumas falsas
idéias adotadas nos últimos anos, os adultos são um “bem necessário” ao escotismo. Ainda
mais porque, se nos compararmos como outras instituições, dificilmente encontraremos
algum outro exemplo de relacionamento entre jovens e adultos tão interessante, intenso
e presentes na história como o que vivemos no escotismo.
As políticas de envolvimento dos jovens, que tem nos jovens líderes seu
personagem central, se dedicam originalmente a melhorar esta relação e oferecer
ferramentas que apóiem (mas que de forma alguma substituam ou corrompam) sua
fluência.
Os jovens líderes representam, nesta análise, um ponto de interseção entre as
partes. Para o movimento, representam senão membros juvenis do último ramo do
programa de jovens, uma geração de jovens adultos recém saídos do universo dos jovens
e por isso legítimos interlocutores de seus interesses, aspirações e necessidades. Para a
organização representam, exatamente pela mesma condição de jovens adultos recém
saídos do universo dos jovens, mas agora adultos de fato, uma geração em potencial que
possa trazer novas idéias, compromisso e perspectivas à longo prazo.
Esta relação, que hoje está sendo reaprendida, é reconhecida com uma das gênesis
do escotismo. Portanto, mais do que uma necessidade prática, sujeita a correções, tratase de uma essência a que devemos sempre nos deixar influenciar.
Preocupado com isso que o chefe Osny Fagundes, ao refletir sobre essa questão,
perguntou: “Nossa instituição quase centenária é tão frágil que não pode identificar e corrigir, sem
traumas e sem conflitos, os erros que cometeu ao longo de sua existência?”62. E foi atento ao
desenvolvimento da relação entre estes dois pólos que definem o escotismo movimento e organização, tal como da superação de alguns paradigmas que nos afetam,
que escolhemos um caminho estratégico, que conheceremos na seqüência deste livro.
Vamos em frente?!
Apesar do efetivo proporcionalmente pequeno se comparado a outros países, o
Escotismo é o maior movimento de juventude do Brasil, com mais de 50 mil jovens e
um longo tempo de contribuição a sociedade brasileira.
Como qualquer instituição dedicada à educação, em nosso caso a educação nãoformal, estamos diante de um grande e eterno desafio: contribuir na construção de um mundo
melhor. Hoje, em todo mundo, a educação está diante de paradigmas que, se por um lado,
justificam o escotismo como alternativa aos jovens, por outro lado, impõem ao
escotismo obstáculos permanentes.
62
FAGUNDES, Osny Câmara. Reflexões sobre o Plano 2001. Curitiba - PR: UEB, 2001. p 3.
Nesta virada de milênio, com novas abordagens e pensamentos para educação, a
juventude está inserida no contexto da era pós-industrial, da sociedade da informação,
do mundo do trabalho, da transformação social e busca pelo desenvolvimento humano.
Acompanhando estes novos tempos, o escotismo mundial está em meio de
profundas mudanças nos seus métodos e organização, visando garantir seu propósito e
relevância histórica. Para tal, precisamos entender os passos que estamos dando, ao
superar os modelos conteúdistas e tradicionais, para modelos que ofereçam a todas as
camadas de jovens o aprendizado pelo lazer, pelo desenvolvimento pessoal e pela
participação social, contribuindo assim na formação de cidadãos capazes de exercer sua
autonomia e solidariedade.
Para que isso se concretize, é necessário envolver os atores principais desta
história: os jovens. Nesse momento, acreditamos que os jovens de 18 a 25 anos, que no
escotismo brasileiro são mais de oito mil, sejam a “bola da vez” na busca por novos
caminhos. E se você não é um deles, já foi ou ainda será.
Logo no começo desse livro, lhes falamos da idéia de transição e conflito, que é
algo pelo qual a juventude passa. Agora, no restante do livro, iremos falar sobre como
amadurecer isso, de outros significados sobre a juventude e de desafios para a juventude
dentro e fora do escotismo.